1944-04-03 - Diário de Lisboa

 
Na tradição de Nuno Gonçalves
AS MÁSCARAS RUDES DO POVO
NOS VIGOROSOS PAINÉIS PINTADOS POR MARTINS BARATA
Por Artur Portela
 
     Esta obra de Martins Barata é uma obra de intensa beleza na nossa pintura. Mais ainda: um resgate que vai longe do muito pouco que se tem feito para cá dos últimos mestres do século XIX, e que vai entroncar, no léxico, digamos, no sentimento e na expressão nacional, nos painéis de Nuno Gonçalves – as tábuas mestras da pintura lusíada.
     Não há, propriamente, regras fixas, embora as existam plausíveis, para se projectar um quadro histórico. Há, de facto, princípios gerais de composição, de harmonia colorida a integrar neste ou naquele ambiente, distribuição de massas humanas, equilíbrio de valores geométricos, etc. A eloquência do género está, por dentro da alma do artista, na sua vocação – no que, propriamente, podemos e devemos chamar o seu ideal estético. Mas seja como for, a pintura histórica, que se desdobra, como um cenário, em aspectos vários da mesma época, ou na ordenação de um só tema, tem espinhos dolorosos, problemas graves, através dos quais só um nacionalismo inteligente e penetrante, pode atingir as soluções definitivas, irrefutáveis, permanentes no tempo.
     Martins Barata, que, ontem, era um grande aguarelista, é hoje, graças a esta obra, um mestre da pintura histórica. Dir-se-ia um filho, não, apenas, espiritual, mas do mesmo sangue, do criador dos painéis de S. Vicente. Não há nisto a sombra de um exagero. A sua obra, hoje revelada ao público, depois de três anos de um labor máximo responde por ele. Define-o, e sendo uma interpretação, interpre­ta-o como alta consciência, nobreza de virtudes profissionais, sentido estético e aplicação ao trabalho. Percorre-se a história da arte, em Portugal, de Nuno Gonçalves para cá, quatro séculos, e não se encontra uma obra, que como esta, corresponda a uma síntese nacional.
     É um continuador e é um renovador. Outra luz que se acende, reatando uma perdida tradição plástica, a da figura viva, definida por uma expressão racial, com os vincos do seu mester, com as rugas do seu caracter, com as pregas da sua indumentária própria.
     Portugal inteiro palpita nos painéis de Martins Barata. Os seus dois trípticos são, afinal, os topos da nave da Pátria – o mar e a terra, devassada, lavrada, construída pela grei. Foi esse, porventura, o pensamento supremo do artista. Qual o génio da raça? O povo! Quem se destaca nas tábuas dos painéis centrais? Num, como primeiro degrau do trono de Afonso III, com os seus forais e numa grandeza monumental, os delegados dos Municípios, com as primeiras liberdades, na letra gótica dos pergaminhos cívicos – e, no outro, o povo ainda, distinguido nas suas profissões, o arquitecto, o letrado, o pescador, o ferreiro, o besteiro. Decerto, Martins Barata não procurou dar à sua obra uma estrutura filosófica, mas, plasmando a verdade, na sua extraordinária evocação, colocou nos focos os valores principais, dando aos outros uma justa e histórica equidistância.
     É, sem dúvida, um alto acontecimento esta obra de Martins Barata. Nem todos os dias se erguem, com semelhante energia, peças de arte de tão nobre risco estético, e até, diga­mos, arquitectónico. O pintor foi, sobretudo – um artista. Nos seus dois trípticos, onde se contêm 72 figuras, o grandioso histórico é atingido, sem atitudes convencionais, nem linhas de um exacerbado dinamismo, que, se criam atitudes de movimento, também admitem confusões e falsidades plásticas. O mais fácil seria isso, género tromp d’oeil; o mais difícil foi o que ele realizou. Encheu de dignidade o seu magistral teatro histórico, gravando em cada máscara, e em cada atitude, um acento indiscutível de convicção humana. Não são, apenas, corpos, são consciências – caracteres! Cada figura tem a sua grandeza, o seu heroísmo! Eram tão fortes naquele tempo, que, de certa maneira, a emoção plástica, converte-se em admiração. Da sua serenidade desprende-se uma força, e o braço que ergue o folio, a mão que cinge a espada, o rosto atento que ouve ou transmite a palavra – são, eloquentemente, portugueses, numa expressão capital. Suponho ser esta a principal qualidade da obra extraordinária. Como conseguiu o artista interpretar assim os índices físicos, e a sua concomitante correspondência moral, tornando-a sensível e, visualmente, acessível? Não pintando modelos, nem conjecturando tipos! Todas as setenta e duas figuras são verdadeiras; estão vivas, como o documenta, nos respectivos estudos, o grande artista. Foi um pescador da Nazaré, que serviu para representar D. Afonso III, numa cabeça admirável, de energia, de reflexão interior de força contida. Um é mendigo, outro pastor, aquele relojoeiro, este, com a sua loba de letrado, um bate-sola; o bispo, de olhar solerte, cujo báculo se ergue acima da cabeça, um cavador. E todos, todos, são do povo extreme, identificados pessoalmente com o selo da raça e o caracter cronológico, caracter que se não perdeu, que permanece constante, além das tábuas do Museu de Arte Antiga, numa espantosa ressurreição. Eis, pode dizer-nos, Martins Barata, a humanidade portuguesa. Foram assim os nossos avós e somos ainda assim!
     E agora, sublinhamos nós, vede essa multidão. De um lado o rei entronizado e cercado de dignitários da Cúria, o condestável do reino e passavantes, falando, directamente com os mesteirais, os delegados dos concelhos, os homens bons num ambiente de sugestão das Côrtes de Leiria, vincado através de dois arcos românicos, tendo à sua direita, no respectivo painel, o clero, bispos, diáconos, mestres das ordens, e à esquerda, na outra tábua, os nobres, ricos-homens, infanções, cavaleiros e escudeiros entre espadas, lanças signas e falcões, cabeças recortadas, lobrigando-se ao fundo, um pano de castelo ameiado; do outro, S. Vicente, o padroeiro de Lisboa, cabeça de Portugal, também num halo branco, dominando os homens que, através dos seus ofícios, representam a arte, a ciência, o mar e a terra, dando a dextra, às figuras que simbolizam a agricultura, quatro apenas, com suas alfaias e animais; e a sinistra às que se empregam nos vários processos do tráfego e do escambo. O drama humano, em grandes linhas sintéticas, palpita nesses trípticos. Somos todos nós que ali estamos, à distância de centúrias, mas reconhecíveis, numa vocação e num destino.
     Martins Barata como que foi Fernão Lopes. Há, na sua pintura, pela grandeza com que foi tocada, um caracter, já o dissemos, monumental, porque cada figura – explicamo-lo agora – ergue-se e rasga-se, contorna-se na tela, como se fosse uma estátua de bronze eterno. Elas falam no seu silêncio!
     Marins Barata fica, para sempre, algemado a esta obra, que tem qualquer coisa de prometaico, e que sendo a alma de Portugal, é também a sua luz e a sua glória.
A. P.
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