DIÁRIO DE MANHÃ, 8-4-1944

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UMA ENTREVISTA COM MARTINS BARATA
ACERCA DOS PAINÉIS DO PALÁCIO DO CONGRESSO
 
por Luís Reis Santos
 
     A maioria dos leitores conhece já, decerto, pelas notícias dos jornais, a descrição dos painéis decorativos que Martins Barata realizou para a escadaria nobre da Assembleia Nacional.
    Velho companheiro de estudos, sincero amigo e convicto admirador de Jaime Martins Barata, eu próprio tive ocasião de fazer breves considerações acerca dos seus admiráveis painéis na edição de ontem, do «Diário Popular».
    Ao rematar esse artigo de jornal tive ensejo de dizer: «Martins Barata afirma-se, nesta obra, artista de excepcional probidade, que possui um pensamento elevado e sabe traduzi-lo plasticamente, com o processo técnico mais adequado, o desenho robusto e firme, a pintura de convicção e sinceridade que afastam desdenhosamente preocupações doentias e afectações petulantes.
    Da nobreza da composição e da simplicidade larga da factura, com a justa medida na maneira de pincelar e modelar, resulta a imponente afirmação da força consciente deste povo que construiu uma forte Nação e um grande Império».
 
    Uma entrevista com o autor dos painéis da Assembleia, tem, neste momento, oportunidade, e é com o mais sincero prazer que vou fazer algumas perguntas a este velho camarada que teve agora o ensejo magnífico de revelar alguns aspectos eloquentes do seu talento e das suas grandes faculdades de trabalho.
 
     - Queres dizer-me, Martins Barata, algumas palavras acerca da concepção e da realização desta tua obra?
     - O acabar é agradável, mas a fase do começo, a da invenção, é talvez a mais atraente. Bem vês; dão-nos umas paredes nuas e o encargo de fazer nelas uma pintura decorativa. Primeiro que tudo é preciso ter-se uma ideia do que vai por-se naquelas paredes, qual o assunto que vai ali representar-se e como vai representar-se, isto é, é preciso ter-se a antevisão da composição e da cor. Essa ideia procura-se com insistência, muitas vezes em vão. De repente – e tantas vezes sem se esperar – a ideia surge, a boa ideia! Aquela que logo que sentimos ser boa – e para nós a única possível. Então (em pensamento claro), já vemos a obra executada. Vivemos essa ideia intensa. E, se acabamos realmente por assentar nela, temos de impor a nós mesmos uma disciplina e obedecer-lhe. Não custa nada obedecer a uma ideia nossa.
 
     - E... e depois? – perguntamos, interessados.
     - Depois é o trabalho. Calmo ou nervoso, mas fatigante sempre, mesmo quando não se sente a fadiga nem se contam as horas. Estudam-se as cabeças, as atitudes, os tecidos, os pormenores vários, etc.
 
     - ...e quanto tempo levaram esses estudos?
     - Cerca de ano e meio – responde-nos Martins Barata. A obra de arte não se mede aos palmos – mas uma pintura de mais de sessenta metros quadrados e setenta figuras maiores que o natural, numa composição muito densa (que julgo ser a que o local requer) - não se improvisa.
 
     - E onde procuraste tu os modelos para aquelas setenta e duas figuras? – inquirimos.
     - Aquilo é tudo gente de ar livre, curtida do sol e do tempo, como seriam as figuras medievais que representam, sejam elas nobres ou clérigos, mesteirais ou negociantes. Os modelos foram pescadores, ganhões e pobres de pedir. O dominicano, por exemplo, é um ganhão de 70 anos, da minha terra, e que ainda lavra. O bispo da casula vermelha é um pedinte da estrada; o bispo de pluvial verde é um barbeiro de aldeia; e assim todos. São todos portugueses e eu gostaria que o parecessem.
 
     - E depois dos estudos segue-se logo a realização da pintura, não é verdade?
     - É verdade, a pintura final. Isso volta a ter para mim outro interesse grande. É a prova real que se tira de todo o trabalho feito anteriormente. Há que harmonizar toda a grande orquestra cujos naipes se ensaiaram em separado. E simplificar, simplificar, simplificar, de maneira que os pormenores de erudição se não sobreponham à humanidade das figuras.
 
     - Trabalhaste assim com toda a segurança...
     - Não tanta que não inutilizasse muito trabalho, quando o que estava estudado ou feito não me satisfazia. É preciso ter a coragem de inutilizar. Às vezes custa…
 
     - Bem sei; e passados três anos sobre a ideia inicial, que pensas tu dela?
     - Nestes três anos aprendi, evidentemente, muita coisa. Mas se tivesse de recomeçar, sinto que as linhas gerais das composições seriam exactamente as mesmas.
 
     - Sim, tiveste realmente sorte com essas ideias…
     - Já alguém, que muito admiro, me disse o mesmo. Todavia é preciso ver que a minha sorte foi ter a oportunidade de realizar uma obra de grandes dimensões e da qual eu não poderia tomar a iniciativa, como se toma a de fazer um retracto ou uma paisagem. Essa possibilidade de pôr de pé uma ideia é a sorte que todo o artista deseja ter; foi a que eu tive. E não posso esquecer que a devo à confiança do grande Ministro Duarte Pacheco, confiança que não teve restrições. Nada tinha a fazer senão procurar corresponder-lhe.
L. R. S.