1944-04-07 - Diário de Lisboa

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O POVO: HOMENS DO MAR, DO CAMPO E DOS OFÍCIOS,
NOS TRÍPTICOS DE MARTINS BARATA
 
     A crítica – a mais austera, a mais analítica, a mais penetrante, e sempre, em deslumbramento, a mais entusiástica – está quase feita. Os dois trípticos da escadaria nobre do Palácio da Assembleia Nacional devem ter entrado já na história da pintura portuguesa contemporânea. Martins Barata mergulhou a sua alma nas raízes da alma do povo. Foi arrancar – ele o diz – as suas figuras, reais ou simbólicas, à vida do trabalho do ar livre. Dos seus modelos, fortes e humildes, sorveu a humanidade que estua no políptico admirável. O mar, a praia, a serra, a planície, a seara e o vergel criam os homens à sua imagem e semelhança. A paisagem ancestral perdura na fronte rude das figuras, nos olhos francos e leais dos modelos, convertidos em nobres, prelados, mesteirais, procuradores, na gente da sua própria igualha. Como eles são hoje, era a gente portuguesa nos séculos XIII e XV. Quem foram aqueles modelos? Onde foi o artista descobri-los? Que clima os humanizou e que sois os crestaram? Revelá-lo-eis a intenção desta página.
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   As Côrtes de Leiria (1254) passam por ser as primeiras em que tiveram representação os procuradores dos concelhos, reunindo-se o Rei com bispos, nobres, prelados «et cum bonis hominibus de conciliis». Mas a alguns historiadores e ao próprio A. Herculano, no «Portugaliae Monumenta», não repugna de todo a hipótese de que em Côrtes anteriores o povo já houvesse tido representação, levando a essa hipótese o termo aliorum (outros) ligados aos de «episcoporum, procerum, et militum...» nas presenças das Côrtes anteriores.
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    Não pretendeu Martins Barata, com certeza, representar «pessoalmente» –  ainda que em conjectural figuração – as personalidades que quer no século XIII (Côrtes de Leiria), quer no século XV (Corporações), poderiam estar ligadas ao assunto, sobretudo no tríptico das Côrtes. Apenas o Rei ali aparece, na sóbria interpretação do artista, que rompeu audaciosamente com a iconografia convencional dos reis da barba hirsuta ou barba bíblica.
   Também o pintor de história não quis representar, precisamente, determinados cargos, quer da «Cúria Régia» – ao costume do Reino de Leão –, quer das instituições que no políptico poderiam aparecer; tantos seriam os cargos e ofícios que o equilíbrio das composições se desmoronaria.
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   Contudo, entre os prelados, não podemos deixar de ver representados dois pelo menos de três que citamos: D. João Egas ou Viegas, arcebispo de Braga; D. Julião, bispo do Porto, cujo pleito com o Rei, as Côrtes ali resolveriam, e D. Aires Vaz, bispo de Lisboa – cidade que ia ser declarada formalmente capital do Reino (1255-1256?), se já o não fosse de facto.
   Também o mordomo-mor nós queremos ver identificado no quadro central da direita: D. João Peres de Aboim, fidalgo de Nóbrega, que acompanhou D. Afonso desde Paris e o serviu durante todo o reinado (1248-1279), assim como o chanceler, Estevam Anes, que seguira também a fortuna do infante expatriado no tempo de seu irmão D. Sancho II, e acompanhou seu rei até à morte. Foram estes dois homens os vultos principais da Côrte.
 
 
OS PROCURADORES, A NOBREZA E O CLERO NAS CÔRTES DE LEIRIA
  As Côrtes de Leiria – 1254
  
Quadro central: Os procuradores
   1- D. Afonso III com idade de 43 anos, presidindo às Côrtes de Leiria (1254), as primeiras, talvez, onde houve representação popular. Serviu de modelo, o pescador da paria da Nazaré, José Lourenço, bravo homem do mar que ostenta ao peito as insígnias da Torre e Espada, por actos de heroísmo praticados na salvação de vidas.
   2- ALFERES MENOR, empunhando o estandarte das quinas, já guarnecido dos castelos. – É um hortelão do seu ofício, natural da região de Colares.
   3- ALFERES MOR – Está representado por um homem, extremenho do litoral, pedinte de estrada na região de Sintra.
   4- O MORDOMO MOR, principal ofício da Cúria – Não passa de um pescador, da Nazaré, cujo nome não apuramos.
   5- Um PAGEM – É, o moço João Pires, pouco mais de 17 anos, ganhão do Alto Alentejo.
   6- O JUDEX, administrador da Justiça – É também um pescador da paia da Nazaré.
   7 e 8- DIGNITÁRIOS da Cúria – Serviram de modelo dois pescadores, que ficam anónimos.
   9- Um DIGNITÁRIO, talvez o Esmoler-Mor – Não passa do Tio Guilherme, moleiro de Póvoa e Meadas, do Concelho de Castelo de Vide.
   10- O CHANCELER da Cúria – Eis um pobre de pedir, anónimo de todo, que percorre a região do oeste extremenho.
   11- O NOTÁRIO ou vice-chanceler – Representa-o o José Chicharro, que – já se vê pelo apelido – é pescador na Nazaré.
   12- REI DE ARMAS – É o Jacinto, também extremenho de nascimento, de antigo ofício de celeiro.
   13- Um PROCURADOR dos Concelhos – Serviu de modelo, como aos restantes homens da repre­sentação popular, um pescador da Nazaré.
   14- Outro Procurador – É o velho Anaclecto, homem do mar da Nazaré.
   15- PROCURADOR, representado por um pescador.
   16- Procurador – É o Salvador Pitó, da Nazaré, convencidíssimo do seu foral.
 
Quadro da esquerda: Alto Clero
   17- O MESTRE DA ORDEM DE SANTIAGO. Não passa do Sôr Anselmo, sapateiro, dos arre­dores de Castelo de Vide.
   18- O MESTRE DOS TEMPLÁRIOS – É o Sr. João Ribeirinho, jovem regente agrícola, natural de Niza.
   19- Um MONGE CISTERCIENSE – Pois não vai além do pitoresco «Cafaiate», ganhão do Alto Alentejo.
   20- O MESTRE DE AVIZ – Aí temos o Sr. Joaquim da Graça, alentejano, lareiro ou feitor, da Casa Fragoso, em Póvoa e Meadas.
   21- Um DIÁCONO – É um camponês do Alto Alentejo, a primeira figura que o artista desenhou para os trípticos.
   22- Dom ABADE DE ALCOBAÇA – Eis o retracto do Sr. Manuel Valente, barbeiro em Póvoa e Meadas, feliz de empunhar o báculo.
   23- O PRIOR DOS DOMINICANOS – Representa-o o tio Agostinho, ganhão do Alto Alentejo.
   24- Um BISPO (de Lisboa, D. Aires Vaz?) – Pois aí temos um mendigo de estrada, natural da Beira Baixa, e que andou pelo Alentejo a acarar.
   25- UM BISPO (de Viseu ou do Porto?) – De qualquer modo é um pescador, natural de Atouguia da Baleia.
   26- O humilde GUARDIÃO DOS FRANCISCANOS – É o António Quinzino, pescador da Na­zaré.
 
Quadro da direita: A nobreza
   27- O FALCOEIRO – Foi também um pescador que serviu de modelo.
   28- É um CONDE que não passa também de um pescador.
   29- É um NOBRE da Côrte, aliás, o José Quinzino, arrais.
   30- Este outro NOBRE, é o Miguel, barqueiro, na Foz.
   31- Este ESCUDEIRO foi representado pelo Roquinhas, caçador furtivo do Alentejo, tipo tisnado de mourisco.
   32- Um Grande de Portugal – Não passa de um pedreiro da região de Niza.
   33- Um RICO-HOMEM – Deu-lhe o modelo o pobre António da Russa, pescador, da Nazaré.
   34- Outro RICO-HOMEM – É o Júlio, maioral de uma casa de lavoura, no concelho de Castelo de Vide.
   35- Um NOBRE, menos nobre que os outros – Apresentamos o tio Caneco Borda d’Agua, apenas, fazedor de redes, da Nazaré.
   36- Um RICO-HOMEM – É um pastor alentejano.
   37- Um CONDE  de Portugal – Também não passa de Francisco Saldanha, pescador da Nazaré.
   38- Um NOBRE – É um pastor da serra de Castelo de Vide.
   39- O MONTEIRO-MOR (?) – Eis o Manuel Fidélio, arrais de campanha.
         O CÃO NEGRO – É um rafeiro de pura raça, do Alentejo, propriedade do Dr. Joaquim Canas da Silva.
         O CÃO CLARO – É um exemplar puríssimo de Castro Laboreiro, do mesmo proprietário.
   
 
AS CORPORAÇOES DE MESTEIRAIS, OS AGRICULTORES E MERCADORES AS ARTES E OFÍCIOS – SÉCULO XV
  
Quadro central: As Corporações
   40- Um MESTEIRAL – Está representado pelo Manuel Barrento, ganhão, do Alentejo.
   41- O mestre LANTERNEIRO – Um pescador.
   42- O IMAGINÁRIO, mestre santeiro – Também um pescador.
   43- O CLÉRIGO do estandarte processional – Aí temos um mendigo, de Lisboa, natural de Redondo, o António Carochas, ganhão em bom tempo.
   44- O mestre ARQUITECTO, senhor das Artes – Pois não é mais que um pescador da Nazaré.
   45- O PORTA-ESTANDARTE da cidade de Lisboa – Outro pescador, que levava o pendão no círio de Nossa Senhora da Nazaré.
   46- O mestre SAPATEIRO – É também um homem da pesca, de seu costume descalço.
   47- O mestre SERRALHEIRO – Também um pescador.
   48- Outro MESTEIRAL, também pescador no modelo.
   49- O mesteiral PESCADOR, não podia deixar de ser um pescador da Nazaré.
   50- O mesteiral das ARMAS – Foi também de modelo da praia da Nazaré.
   51- A FIANDEIRA – Serviu de modelo para a única figura feminina dos painéis uma distintíssima jovem senhora, de Lisboa, de dulcíssimo tipo português, artista pelo sangue e pelo coração (G.G.O. G.).
   52- Um LETRADO – Pois não passa de um moço da lavoura do Alto Alentejo, a quem nunca ensinaram a ler.
   53- O mestre FERREIRO – É o José Manuel Pires, ganhão em Póvoa e Meadas.
   54- O MESTRE DA TANOARIA – Representa-o o António Herculano, pescador da Nazaré, que só conhece os tonéis de vista.
 
Quadro da esquerda: A agricultura
   55- O HOMEM DO ARADO – Eis o Filipe, ganhão do Alto Alentejo.
   56- Um CAVADOR – É, de facto, no modelo, um cavador das leiras alentejanas.
   57- O SEMEADOR – Representa-o i Jesuíno Motaco, criado de lavoura em Castelo de Vide.
   58- O PASTOR – É também um autêntico pastor da região da Extremadura, na lomba da Serra de Aire.
          A PAISAGEM do fundo é de campos de Castelo de Vide.
          A CABRINHA é da raça Machuna, autoctone do Alentejo.
          O BOI é de modelo de um toiro reprodutor, de raça mirandesa, pertencente à Fonte Boa, e chama-se «Carito».
 
Quadro da direita: O comércio
   59- O CARREGADOR – Teve por modelo um moço de lavoura do Alto Alentejo.
   60- Um RICO MERCADOR – Não é mais do que o Miguel, taberneiro em Colares.
   61- O REMADOR – Pois é o «Penetra», que presta serviços na Ribeira Nova, de Lisboa.
   62- Outro RICO MERCADOR – Aí, nesta opulenta figura, que podia estar na rua Nova dos Ferros, apresentamos o Silvino Meca Bombas, pescador da Nazaré.
 
 
O ARTISTA FALA DA SUA OBRA
   Tempos, recentes ainda, houve, em que as artes plásticas se propunham atingir os ideais emotivos da música. Há sempre, numa época, uma arte a dominar. Foi a música, nos fins do século passado. Agora é arquitectura – e as artes que a acompanham, materialmente, a ela se sujeitam, não só em harmonia plástica, como em espírito. Estamos numa época em que a Arquitectura se dirige nitidamente para o monumental. A escultura volta, nos dias de hoje, quando ligada àquela, a ter um carácter «tectónico», de estreita ligação ao material. Não se aceitam agora as estátuas vaporosas e musicais de há meio século. A pedra é pesada e não se lhe disfarça o peso e a contextura; antes se procura enobrece-la pondo-a em evidência. A pintura, no «monumento», acompanha a arte dos volumes, procurando, mais do que as subtis harmonias musicais de cores esmaecidas – a sólida construção dos corpos.
   Esta feição do monumental em pintura vai de encontro a uma tradição nacional que tem o seu expoente maior em Nuno Gonçalves. A moderna decoração histórica portuguesa filia-se, mais ou menos, nos painéis de S. Vicente, que nos vieram reforçar, e poderosamente, a consciência nacional.
   As pinturas da Escadaria Nobre do Palácio de S. Bento integram-se assim – pela tradição, pela época em que são feitas, e ainda pelo imperativo do local – naquela feição construída, vertical, «tectónica».
   As figuras estão bem assentes no chão. Não há atitudes declamatórias, nem movimentos teatrais. Umas representam a Nação – no seu aspecto técnico, profissional, económico. Outras representam-nas no seu aspecto político. São «um mundo de coisas» – têm esta ambição desmedida: representar Portugal. São os donos da casa, que recebem quem vem, dignos, calmos e solenes.
   A côr foi sujeita a uma escala branda: na paleta apenas houve, além do branco, ultramar, oca, siena queimada, almagre e esmeralda. O vermelho mais intenso é a côr de tijolo – que nas pinturas atinge vibrações acarminadas. O único amarelo – a oca. Um grande predomínio das Terras.
   Os modelos, como já foi dito –  são gente do ar livre, gente humilde de trabalho.
   Só quem os viu pode sentir a «autenticidade» que toma uma figura de ganhão ou de pedinte que veste uma casula ou um hábito.
   Modelos admiráveis aos quais nenhum modelo profissional se pode comparar, na sua grande parte amigos velhos, que deixam, por um bocado, o remo ou a rabiça do arado para vir pousar. E pousam uma, duas horas – como estátuas. Não querem descansar – porque «aquilo não cansa»...
   Todo o trabalho, ideação, estudo, execução o faço, não isolado, mas com a família em redor – ou perto. Além dessa presença – a companhia da música é quase indispensável. Nada sugere mais, nada tonifica mais do que a companhia da música – nem sempre a Música dos Grandes – mas quase sempre.
   Colaboração. É um caso muito pessoal para admitir uma grande subdivisão de esforço. Mas quero em primeiro lugar pôr em relevo a companhia constante e animadora – a colaboração de crítica – e por vezes artística, também de minha mulher (D. Mamia Roque Gameiro).
   Na execução... Tive o auxílio de Hermano Baptista, bem conhecido pintor de aguarela que, para isso, sacrificou algum tempo em certa altura. E – mais ninguém.
J. Martins Barata