Retrato da filha do artista: Raquel (1904)

Retrato da filha do artista: Raquel
 
Aguarela sobre papel
72 x 51 cm
     O artista inspira-se na bela figura da filha Raquel para motivo central desta aguarela.
     Perspectiva-a meio reclinada num velho cadeirão, na atitude de alguém que, mergulhado na leitura, desvia absortamente para o lado, o olhar de expressão algo enigmática, num rosto emoldurado por madeixas encaracoladas que lhe adoçam as feições.
     O traje que a personagem enverga é de um belíssimo efeito cromático. O pintor sugere a pesada textura do veludo e cria a sensação sinestésica de macieza ao tacto e de brilho provocado pela incidência da luz. O largo cabeção de renda branca atenua a larga mancha espraiada verde mar do vestido que apenas descobre os pés do modelo.
     Estruturalmente, o quadro resolve-se numa dicotomia em que se interceptam, mas, concomitantemente, se opõem, linhas e planos diversificados em perspectiva vertical, horizontal e até oblíqua. E os objectos focalizados apresentam formas geométricas diferenciadas, criando contrastes inesperados. O cavalete, cujas linhas rectilíneas e esguias a espaços se adivinham, contrapõe-se à esfericidade da bola e às pastas quadrangulares, mas mostra similitude com a elegante perna do cadeirão finamente esculpida, em evidência no primeiro plano.
     A figura retratada avoluma-se aos olhos do eventual observador e corta diagonalmente a composição, permitindo o afastamento no espaço de alguns dos elementos dispostos em segundo plano, com os quais se entrecruza, nomeadamente, o cavalete sustendo um quadro que aparenta estar inacabado, meio encoberto por uma toalha pintada em suaves "degrades" de castanho dourado, e que se desdobra em pregas artisticamente dispostas. Ainda neste plano, o fogão de aquecimento introduz uma nota escura na composição.
     O cromatismo desdobra-se em dualismos de claro/escuro de surpreendentes efeitos plásticos. As tonalidades mais escuras adoçam-se em contacto com os tons mais claros, os brancos atenuam o seu carácter de cor fria, aquecidos nalguns pontos por breves pinceladas em castanho dourado. Duas breves notações de cores da gama de vermelho e rosa magenta introduzem uma nota diferente no conjunto da composição.
     Contrastando com a evidente juventude do modelo, certos elementos do quadro acusam já uma determinada vetustez: no fogão, leves tons de castanho avermelhado sugerem a presença da ferrugem, e no cadeirão, manchas esbranquiçadas denotam igualmente a usura do tempo.
Maria Lucília Abreu
in Roque Gameiro - O Homen e a Obra, ACD Editores, 2005
 
 
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