Em Almoçageme

Em Almoçageme
 
Aguarela sobre papel
18 x 22 cm
     A silhueta feminina encostada ao muro que se alonga longitudinalmente no plano do fundo constitui um elemento primordial da composição, tornando-se o seu verdadeiro referente. A posição que a personagem ocupa na economia do quadro força a convergência do olhar que só depois atenta noutros pormenores do espaço envolvente, para se fixar de novo na juvenil figura. Observamos, então, mais detalhadamente a longa mancha branca do vestido, a posição corporal meio inclinada, de rosto apoiado na mão esquerda, numa atitude repousada de quem, descansadamente, deixa o tempo fluir. Contudo a sua expressão fisionómica parece exprimir interesse por algo que se passa fora do nosso campo visual, como se a cena do quadro se prolongasse para lá do muro.
     O pintor reproduziu o recanto de um terraço, vislumbrando-se parcialmente a parede de uma casa e parte da janela de guilhotina, sublinhada por uma cercadura de pedra. Os caixilhos brancos emolduram os vidros servindo-lhes de contraste cromático. A pintura que cobre a parede da vivenda revela-se envelhecida pelo tempo; alternam manchas irregulares de vermelho carmesim, com outras tonalidades mais claras por se ter perdido, em certas zonas, a cor inicial, ficando à vista o amarelo esbranquiçado da estrutura primitiva.
     Inequívocos indícios sugerem a proximidade do Outono. Bastas folhas de amarelo acastanhado juncam o solo e, se naquelas que ainda resistem nos troncos do enorme plátano domina o verde original, surgem, esporadicamente, algumas tonalidades amarelo acobreado. Tanto na casa como no terraço e até na árvore o tempo deixou marcas indeléveis. A vetustez daquilo que o homem construiu parece ter encontrado eco no próprio envelhecimento da natureza. E uma luz suave, tamisada pelos ramos da árvore, em contrates de sombra cortada por rápidas manchas de claridade, banha suavemente a intimidade deste espaço fechado, numa envolvência de vaga melancolia. Gera-se uma certa antinomia com a evidente juventude do modelo, numa oposição entre o presente e o passado.
     O artista encontrou cromatismos adequados para caracterizar o ambiente sugerido pela imagem. As lajes do pátio e o muro adquiriram o tom escuro característico das velhas pedras onde por vezes se confundem pinceladas de um tom castanho esverdeado a que branco da roupa e a claridade que emana do céu dão ainda maior relevo.
Maria Lucília Abreu
in Roque Gameiro - O Homen e a Obra, ACD Editores, 2005
 
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