Início  >  Ilustrações  >  Crónica do Condestavel de Portugal  >  Cap. X

 

Ilustrações

 

 Crónica do Condestavel de Portugal

 

Capítulo X

 

DE COMO SE AZOU E VENCEU

A BATALHA REAL DE ALJUBARROTA

 

Senhores, grande alvoroço e angústia vai em Portugal! Estava El-Rei em Guimarães, quando lhe veio nova certa de que El-Rei de Castela entrava com todo o poder na sua terra, para a conquistar. O Mestre, Rei eleito, logo consigo tomou a decisão de lhe pôr a batalha. Agora que sabia que todo o povo queria o reino independente e governado por um rei seu natural; que tinha um Condestável, tão capaz para grandes feitos; e a sua gente aumentava em número, em experiência e confiança, o moço Rei ardia também por medir-se, hoste a hoste, lança a lança com o Rei intruso.

E, ala! que é tempo de soar a rebate! O Rei e o Condestável, juntos todos os seus, marcha­ram de Guimarães ao Porto; dali a Coimbra; e daqui a caminho de Lisboa. Que Deus os leve em boa hora, aos cavaleiros mantenedores de bom direito!

E, a par de Santarém, El-Rei passou além do Tejo para Muja. E como a cidade e o cas­telo estavam por El-Rei de Castela, andavam no campo muitos Castelhanos em guarda dos que iam de Santarém à erva. E, ao passar do rio se travou uma valente e bem pelejada escaramuça. E Vasco Martins de Melo, o Moço, primeiro que da vanguarda passou a água além, como homem de grande coração, a cavalo como ia, se lançou entre os muitos Castelhanos que lhe queriam defender o passo, fazendo tanto por si só, que o melhor homem do Mundo o não podia melhor fazer. Enfim, foi derribado; e ele em terra, Martim Afonso, seu irmão, descavalgou também com dois escudeiros seus, e um e outro passaram bem mau pedaço até que o Condestável lhes acorreu e afugentou os Castelhanos. Dali, cerca de Muja, El-Rei e o Con­destável tornaram a atravessar o Tejo para a estrada que vai para Lisboa; e foram poisar a um pomar donde haviam colhido toda a fruta. E era tamanha no arraial a míngua de mantimentos, que se dizia que em todo não haveria mais do que um pão, salvo se o tinham El-Rei e o Con­destável. Ora estando D. Nuno comendo e tendo sobre a mesa cinco pães, que eram quantos lhe restavam, chegaram a ele cinco cavaleiros ingleses, dizendo que morriam de fome e sede, e queriam beber com ele. O Condestável lhes disse que lhe prazia muito: ordenou que lhes trouxessem água às mãos para se lavarem, e mandou-os assentar. Eles, como comedidos, dis­seram que queriam beber de pé: e cada um lan­çou mão de seu pão; e comeram e beberam dm. vezes, e foram-se. De sorte que o Condestável teve de comer alguma carne sem pão; e isto fez sem mostrar qualquer enfado.

Assim deve o nobre senhor ter e mostrar irmandade com os cavaleiros estrangeiros.

E chegando El-Reí cerca de Alenquer, orde­nou ao Condestável que fosse a Entre Tejo e Guadiana juntar quanta gente pudesse para vir à batalha. O Condestável partiu logo cor 300 lanças e foi passar de novo ao porto de Muja. Mas, ao chegar ali, fugiu-lhe a maior parte da gente que levava, com medo dos Cas­telhanos que estavam em Santarém, de sorte que lhe não ficaram mais de 35 lanças, tanto a multidão dos inimigos põe temor nos poucos e menos esforçados. E entre os que ficaram, um escudeiro, Antão Vaz de seu nome, passou toda a noite a pé guardando a ponte de Muja, e dizendo, por ser homem valente e de palavra solta, que ele só a defenderia de quantos Castelhanos havia em Santarém.

Ao outro dia o Condestável se partiu de Muja e foi dormir a Salvaterra e dali a Montemor, onde, ao mesmo tempo que ele, chegou Nuno Fernandes de Morais que vinha de um grande desbarato que acontecera a Vasco Gil Carvalho, quando com muitos outros fora levar uma grande recua carregada de pão a Arronches, que estava muito minguada de mantimentos. Os Castelhanos vieram sobre eles de surpresa, desbaratando-os, e levaram-lhes a recua, o que muito doeu ao Condestável, porque eram todos da sua hoste e tardariam mais em aprestar-se para ir à batalha. Dali, de Montemor, se foi a Évora donde escreveu a toda a gente da comarca, ordenando-lhes que viessem ter com ele. E acontece. que os homens vieram quase todos desarmados, porque tinham perdido as armas no desbarate de Vasco Gil. Mas o Condestável, animando-os, lhes dizia que se armassem como pudessem ainda que fosse com os podões do enxerto e as foices de segar, pois quando um homem quer lutar de vontade todas as armas prestam. E de Évora se partiu o Condestável para Estremoz, onde em breve tempo se lhe juntaram uns 500 homens de armas e 2.000 entre besteiros e peões. E nisto El-Rei lhe mandou recado por Martim Afonso de Melo que se fosse logo a ele com a maior pressa do mundo, porque já El-Rei de Castela estava cerca de Coimbra.

Tanto que o Condestável houve tal man­dado, sem mais detença se partiu com sua gente e se foi a Avis, dali a Ponte de Sor, e dali aposentar-se e comer duas léguas aquém de Abrantes, onde já El-Rei chegara. Depois de comer se partiu com 60 lanças para o alojamento real, o que sabendo El-Rei, saiu a recebê-lo ao rio, onde um e outro tiveram, como amigos irmãos, grande prazer quando se viram.

E juntos os dois em Abrantes, teve El-Rei seu conselho sobre o feito de batalha que muito desejava pôr a El-Rei de Castela. O Condestável, mais que ninguém, o desejava, entendendo que seria bom serviço para o Rei e o reino. Mas os outros do conselho mostravam-se mui contrários, alegando razões, pelas quais se devia escusar a batalha a todo o custo. E, sobre isto, de uma parte e doutra não cessavam os debates. O Condestável, que não era homem de palavras, mas de feitos, temendo que El-Rei mudasse do que tinha na vontade, ergueu-se um dia do conselho à tarde, e no seguinte, de manhã, acabada a missa, partiu-se com sua gente, sem dizer pala­vra, a caminho de Tomar, por onde os Castelha­nos vinham.

Quando El-Rei soube tal, cuidou de si para si que D. Nuno ia afrontado, por não quererem aceder aos seus desejos. Aqueles do conselho, que eram contrários a D. Nuno, apressaram-se a dizer a El-Rei, movidos pela inveja, que o Condestável procedera assim em seu desprezo. Mas El-Rei, que o conhecia melhor do que nin­guém, não lhes dava ouvidos; e enviou ao Con­destável João Afonso de Santarém, do seu con­selho, mandando-lhe dizer que se tornasse. D. Nuno enviou como resposta que lhe pedia por mercê o deixasse seguir. El-Rei tornou a mandar, desta vez a Fernão Álvares, com a mesma ordem. Mas nisto El-Rei reuniu de nove o conselho para deliberar sobre a batalha; e o Dr. Gil de Ossem proclamou que o Condestá­vel procedia como bom cavaleiro e que o dever de todos era ir à batalha. A esse tempo, ao novo recado que El-Rei mandara, de novo o Condestável mandou pedir que por mercê o dei­xasse prosseguir, pois ele com aqueles poucos, mas verdadeiros Portugueses, daria batalha aos Castelhanos; e que por isso seguia avante e se ia aposentar a uma ribeira, que chamam Abrançalha, onde aguardaria seu recado. E como no conselho todos acabaram por concordar com Gil de Ossem, El-Rei mandou dizer ao Condestável que se fosse a Tomar, onde ele o iria encontrar com sua gente.

D. Nuno, apenas ali chegou, mandou três escudeiros: um que fosse dizer a El-Rei de Cas­tela que ele lhe mandava requerer, da parte de Deus e do mártir S. Jorge, que desocupasse a terra de El-Rei, seu senhor; e, se assim o não quisesse, o desafiava para batalha. Aos outros dois ordenou que fossem ver se podiam prender alguém da hoste castelhana para haver informa­ções. O primeiro escudeiro fez o que o Condestável lhe mandou: ao que El-Rei de Cas­tela respondeu que não conhecia D. Nuno por Condestável, e a seu senhor ainda menos como Rei; e que não lhe respondia mais. E quando este emissário regressava, encontrou-se com os outros dois, que já traziam preso um escudeiro que se apartara da hoste castelhana, por conhe­cer bem a terra, pois era português. O mensageiro veio adiante dar a resposta ao Condestável, e dizendo como atrás vinham os outros dois com o português da hoste castelhana a quem tinham feito prisioneiro.

Nun'Álvares cuidou de ouvi-lo a sós, e intimou-o, pondo-lhe grande medo, a dizr: toda a verdade. O português lhe contou come El-Rei de Castela trazia consigo para cima de 30.000 homens de armas, besteiros e peões, não falando nos milhares de serventes da grande carriagem. O Condestável, mau grado os Portugueses não excederem a quarta parte da hoste castelhana, não perdeu a confiança. Já então El-Rei era em Tomar e se fazia o alardo da sua hoste. E Nun'Álvares mandou àquele por­tuguês, sob pena de morte, que ao chegar ao arraial proclamasse que era verdade o Rei de Castela trazer consigo muita gente, mas que todos vinham tão descoroçoados, que aquela pouca e boa gente, que ali era, desbastaria dois tantos, ao ânimo com que os via. E tal, como o Condestável o ensaiou, assim ele o disse.

Ali mesmo El-Rei e o Condestável concer­taram suas gentes, em vanguarda, retaguarda e alas, e partiram-se de Tomar, o Condestável à frente e El-Rei na retaguarda, a caminho de Ourem, onde fizeram seu alojamento. E ape­nas o arraial foi assentado e a tenda de El-Rei armada, levantou-se um veado a meio e correu à volta, e indo todos atrás dele com suas lanças para o ferir, o bicho foi direito à tenda maior de El-Rei, onde o mataram. Logo pelo arraial correu pregão, afirmando que era bom sinal a morte do veado em tal lugar e como foi, pois esperavam em Deus que seria El-Rei de Castela morto ou preso naquela mesma tenda. Ao. outro dia, se partiram para Porto de Mós, e ali vie­ram novas certas corno já El-Rei de Castela era em Leiria, e à segunda-feira seguinte, que era véspera de Santa Maria de Agosto, a hoste portuguesa se partiu para o lugar onde foi a batalha.

O Condestável que fora adiante, escolhera na charneca, cerca do lugar de Aljubarrota, uma cumiada, acima do leito de duas pequenas ribei­ras, que a ladeiam e correm para o rio Lena. O Rei quando ali chegou, e D. Nuno lhe mos­trou como tinha tudo concertado foi mui alegre e mais animoso se mostrou, pois dali não só quedavam sobranceiros aos contrários, mas estes não podiam dar na sua hoste, todos, de uma vez. Já então El-Rei D. João de Portugal mandara requerer por Gonçalo Anes Peixoto a El-Rei de Castela que desocupasse sua terra e reino, senão que o desafiava a batalha, ao que ele respondeu que a aceitava de bom grado. O Rei concertou a sua hoste, ficando ele na retaguarda e o Condestável na vanguarda.

E sendo já todos, tanto de Portugal como de Castela, juntos e postos para pelejar, Pêro Lopes de Ayala, que depois foi preso na batalha, e Diogo Álvares, irmão de D. Nuno, e Diogo Fernandes, marechal, vieram falar ao Condestável, dizendo que lhe traziam recado de El-Rei de Castela. Apartaram-se com ele e lhe disse­ram que o Rei castelhano lhe enviava dizer, que por ser tão grande cavaleiro, como era, e irmão do Prior do Hospital, que já era feito Mestre de Calatrava, lhe pesava muito vê-lo com aque­las gentes e com tão pouca defensão; e por isso lhe rogava que se passasse para ele, pois o acres­centaria e lhe faria tais mercês de que ele fosse bem contente. Outras tais palavras lhe disse Diogo Álvares da parte do Mestre de Calatrava, seu irmão. O Condestável respondeu que dis­sessem a El-Rei de Castela que esperava em Deus vencê-lo e desbaratá-lo nesse dia e pô-lo morto ou preso, em poder de seu senhor, o Rei. E a seu irmão dissessem que cuidasse antes de si, pois bem mau pedaço tinha que passar. E como aqueles senhores porfiassem na mensa­gem, Nun'Álvares disse-lhes com gesto desabrido: que se fossem logo embora, ou mandaria aos besteiros despedi-los com setas. E assim, corridos, se partiram.

El-Rei de Castela, porque da parte de Lei­ria o vento e o pó batiam no rosto, passou-se para Aljubarrota e por essa parte se aprestou para vir contra os Portugueses, pelo que El-Rei e o Condestável tiveram que mudar os lugares, tornando a frente para ali, donde já os Caste­lhanos vinham. E um pequeno tempo antes que a batalha se começasse, vinte ou trinta homens de pé portugueses, quando viram tanta multidão de inimigos, fugiram com grande medo dentre a carriagem em direcção a Porto de Mós. Os gine­tes de Castela, que já andavam em redor, quando os viram, foram-lhes no encalço, enquanto os fugitivos se acolhiam a uns valados de silvas, onde se esconderam. E, como a porcos à cal­cada, os mataram todos com as lanças, que não ficou nenhum, o que, graças a Deus, esforçou muito os Portugueses, pois mais nenhum cuidou de os imitar, dizendo todos que preferiam mor­rer como homens que como javalis.

E sendo a tarde bem entrada, e os nossos todos pé terra e lanças em riste, como nos Ato­leiros, os senhores castelhanos vieram a cavalo e de galope sobre a vanguarda de D. Nuno, com grossura de gente e força tanta, como açude cheio que rebenta. Ali foi o embate dos cavaleiros, à lançada, tão rijo que rompeu a vanguarda portuguesa. E era coisa de ver-se: contra o Condestável, que estava em frente da bandeira, foram tantas as lanças como selva espessa e eriçada. Já as duas alas portuguesas se tinham dobrado sobre os Castelhanos a tornar-lhes o passo; e, de um e doutro lado, voaram tantas lanças em pedaços, que cobriam o chão e embaraçavam a peleja. E enquanto os homens de armas se acometiam às espadas, El-Rei veio com a sua reta­guarda, a espada nas mãos ambas, ferindo gran­des golpes, como valente Rei que defende sua coroa e ajuda os seus vassalos.

O Condestável, abrindo clareira à volta, mais rugia que bradava, a cada passo:

«— Eh! Portugueses! Ter firme! Dar neles! Pelejar! Por vosso Rei e vossa terra!»

Até que no mais vivo da refrega, a bandeira de Castela foi derribada e seus leões arrastados no pó. Alguns castelhanos recuaram. Os Por­tugueses, que estavam cerca, deram neles gri­tando: Já fogem! Já fogem! Mas enquanto daí começavam de fugir, veio El-Rei bradando ao Condestável que os homens de pé da reta­guarda corriam grande risco pela muita gente de inimigos que os acometia; e mandando que logo os socorresse. D. Nuno correu ali, a pé, como andava; mas Pêro Botelho, o comendador-mor da Ordem de Cristo, que vinha em cima de um bom cavalo, quando o viu ir assim, apeou-se e deu-lho, de sorte que o Condestável em breve alcançou a retaguarda, onde os homens de pé, de tão oprimidos que se viam pela grande soma de inimigos, estavam prestes a fugir. Mas apenas chegou, sua presença e sua voz puseram tal esforço neles que o obrigaram a voltar atrás sobre os Castelhanos. E estes, vendo como os da outra parte debandavam, começaram de fugir também.

E assim, por prazimento de Deus, El-Rei de Portugal venceu a batalha real de Aljubarrota.

El-Rei de Castela e as gentes que com ele escaparam, fugiram em direcção a Santarém. E ninguém mais cuidava de pôr guardas no arraial, senão fora o Condestável que nisso andou de noite, com grande esforço. E como nesse dia não comera nada, nem lhe achavam as azêmolas dos mantimentos, quando foi ver El-Rei à sua tenda, já noite muito entrada, e este soube como ele não comera ainda, mandou-lhe dar farta­mente de cear. E tal ceia como essa bem se pode cuidar quanto foi saborosa!

Esteve El-Rei três dias ali, onde se deu a batalha; e ao terceiro o Condestável foi em roma­ria a Santa Maria de Seiça, e logo tomou posse do lugar de Ourem, de cujo condado El-Rei lhe fizera mercê e doação, por aquela vitória. As gentes do arraial diziam que ele fora enterra o Mestre de Calatrava, seu irmão, mas não era verdade, pois nunca o puderam encontrar. Dali veio de novo ter com El-Rei, e os dois se partiram a caminho de Lisboa. E ao chegar a Alcobaça, tiveram novas certas de como El-Rei de Castela, depois que chegara a Santarém fugido da batalha, logo sem mais tardança partira com sua gente a entrar na frota que estava em frente de Lisboa e se fora a Castela. El-Rei e o Condestável, ao chegar àquela cidade, foram recebidos pelos seus habitantes com grandes mostra de alegria, por se verem livres da sujeição dos Castelhanos.

Lembrais ainda o que a história contou do alfageme a quem o Condestável mandou pagar o conserto de uma espada e ele se recusou a recebê-lo, dizendo que o faria quando D. Nuno por ali passasse, já feito conde de Ourem? Ora ­este alfageme fez-se muito chegado e ligado com os Castelhanos, enquanto estiveram na cidade; e por isso lhe chamavam cismático, que assim ape­lidavam nesse tempo aos Portugueses desleais. E, por ser tão conhecido como tal, um escudeiro, quando El-Rei vinha para Santarém, lhe pediu os bens do alfageme e ainda o corpo por cativo. El-Rei, pela informação que tinha, tudo lhe outorgou, de sorte que ao chegar a Santarém, o escudeiro tomou logo posse de seus bens, e o prendeu por seu cativo. A mulher do alfageme foi-se ao Condestável, lembrou-lhe tudo o que se passara, acrescentando que pois, graças a Deus, ele era já conde de Ourem, seu marido lhe enviava pedir como paga da espada, que houvesse com El-Rei que o mandasse soltar e lhe entregasse seus bens. Assim fez o Condes­tável, e El-Rei lhe fez mercê do corpo e dos bens do alfageme, que logo foi restituído à liber­dade e à posse do que lhe pertencia. Desta sorte foi pago, e se cumpriu a sua profecia. Casos são estes que o humano entendimento não alcança.