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Algumas considerações

sobre a Arte e a Vida

 

Palestra profissional dos CTT Nº 117, proferida em Vila Real,

em 15 de Julho de 1953

pelo consultor Artístico

Jaime Martins Barata

 

 

Sou um pobre artista, e por isso mesmo atrevido e ambicioso. Guardadas as proporções, quase tão atrevido e tão ambicioso como o pode ser um pobre frade franciscano, que aspira ao céu e deseja a terra — para a dar aos outros.

Na verdade só pelo atrevimento e pela ambição se explicará a escolha de tema tão vasto, tão profundo e vago, como este que escolhi para uma palestra pequena.

Não negarei que certa malícia (também natural no frade) me animou a essa escolha; pois tanto mais merecida, é a desculpa da falha numa tarefa quanto mais difícil se apresenta essa tarefa.

Esta agora, só pessoas com dons e saber excepcionais a poderiam bem levar a cabo. E eu não sou, graças a Deus, uma pessoa excepcional.

Não se espere do pilriteiro outra coisa mais que pilritos. Dou o que tenho, conforme a minha pessoa — e a mais não sou obrigado.

Mas julgo que o assunto é interessante e por vezes positivo e concreto, não se limitando a um doce divagar sem rumo. E tenho mais a dar a boa notícia de que muitas das ideias que apresento e com certeza as melhores, não são minhas. São fruto de leituras e de observações várias e algumas tão remotas que eu teria agora dificuldade em situá-las.

 

Breves considerações sobre a Arte e a Vida.

— Mas que coisa é a Arte e que coisa é a vida ?

Não vou meter-me a definir o que é a Vida. Cada um sabe bem por si o que isso significa de glória, de sacrifício, de tristeza e de prazer. Complexo tão variado que não cabe numa fórmula breve. E todos sabem o que é.

Mas se posso dispensar-me de definir o que é a vida, não poderei deixar de tentar dizer o que se entende por Arte.

E logo, por coincidência, nos encontramos diante de igual dificuldade.

 

Parece que basta abrir um dicionário para se ter uma definição de Arte. Mas não; nenhuma nos satisfaz agora, porque todas são truncadas, incompletas.

Há livros com centenas de páginas onde se procura dizer-nos o que é a Arte. Da sua leitura fica-nos uma ideia, talvez perfeita, mas resultante do somatório de muitas definições parcelares — e escapa-nos a definição única e breve, que não sofra discussão ou reservas.

Volto-me então para um autor inglês que não define, mas nos sugere, com o claro senso britânico, a ideia de Arte através da ideia de obra de Arte, coisa que aliás também não define, limitando-se a exemplificações.

Diz ele: «Um selo do correio, a abertura da «Flauta Mágica», o último perfume de Guerlain, a «última ceia» de Leonardo, o «Hamlet» de Shakespeare, o bailado das Silfides, um prato de lagosta «a la cardinale», a Catedral de S. Paulo, um filme de Walt Disney — todas estas coisas são, ou podem ser, obras de Arte.

As cataratas do Niagara, o rebrilhar da neve no Monte Rosa, o som das vagas batendo nos rochedos, a dança da roupa pendurada sob a acção dum vento fresco, os aromas dum pinhal num dia de verão — não são obras de arte, embora nos agradem tanto como aquelas primeiras coisas.

Salta já destes exemplos, com toda a evidência, uma das características da obra de Arte — que é a de não ser ela obra da Criação mas sim obra do Homem.

Não lhe aparece feita, de origem natural ou divina. É obra do seu engenho, da sua imaginação, da sua vontade.

 

A primeira característica da Arte é, pois, o ser coisa artificial. O próprio nome o está a dizer.

Mas nem todas as obras artificiais são obras de Arte.

Um pão é uma coisa artificial. Não há pães na natureza. Uma pintura é também artificial. Ora não se fazem coisas — o homem é muito preguiçoso para o fazer — sem um fim, sem um destino.

Sabemos bem para que se faz um pão. Mas, uma pintura, para que se fará? Que necessidade vem satisfazer?

 

As necessidades fundamentais do homem — como nos ensinam nas escolas e deve ser verdade — são as necessidades vitais de qualquer animal: comida e abrigo — caverna, casa ou toca e vestuário.

O resto é secundário. Já sabemos. «Primum vivere, deinde philosophare». Primeiro viver — depois filosofar.

 

Temos, pois, se quisermos viver, que dar satisfação, antes de mais nada, aquelas necessidades de subsistência; e aparentemente isso chega para viver.

Bastaria pois que um poder constituído, capaz de o fazer com justiça, recebendo de toda a gente esforço semelhante, a todos fornecesse, em troca, e ao mesmo tempo uma alimentação boa (sem temperos) casa (sem qualquer espécie de adorno) e vestuário (de fazenda suficiente, com a forma estritamente necessária para tapar do frio).

Estariam satisfeitos os economistas, os políticos, os juristas e até os militares. A paz social, a perfeita distribuição das riquezas estaria conseguida, e todos estariam contentes. Todos estariam contentes, como o animal folgado, bem comido e bem dormido.

Mas seria assim? Poderemos nós imaginar o que seria a nossa vida se todos comêssemos comida insossa, se todas as nossas casas se confundissem e os nossos fatos fossem iguais? Sem dúvida que poderíamos subsistir, — mas num ambiente de presídio ou de hospital de incuráveis.

A tristeza e o desespero chegariam a todos, gradualmente. Já não digo ao mesmo tempo porque a resistência à tristeza não pode ser imposta, nem fornecida, sequer, já confeccionada.

E primeiro uns, outros depois, todos deixariam de sorrir e morreriam, não de fome ou de frio — mas de tédio, de secura.

Non in solo panem vivit homo, diz o Evangelho. Nem só de pão vive o homem — e para viver a Vida, não basta subsistir.

 

Há, pois, algumas necessidades, que não são de natureza animal mas que nem por isso podem deixar de se satisfazer, e nem por isso deixam de ser necessidades naturais e espontâneas.

Antes de mais nada existe a necessidade, natural, do sobrenatural, que nos leva, pela graça ou até pelo pensamento, a aceitar a misteriosa ideia de Deus como a mais clara explicação do Mundo. Há pessoas que não gostam desse nome e chamam-lhe outras coisas.

Depois, há a necessidade da Alegria, de procurar aliviar o monótono dia a dia da nossa existência, as penas do trabalho, as contrariedades, as doenças, com diversidade de emoções e sensações.

Estas duas necessidades não se contradizem, antes se completam.

Se a primeira é de natureza eminentemente interior, a outra também o é — ou pelo menos, não é de natureza apenas externa; quero dizer, pode a Alegria da Vida colaborar no pensamento e na ideia de Deus; e o trabalho, assim encarado, ser uma forma de rezar.

Mas é só dessa última necessidade que desejo falar e não de infinito; e mesmo o horizonte limitado, a que me quero cingir, é já largo de mais para mim.

 

A Natureza, dizem os naturalistas, dotou alguns seres animados de uma certa percepção que os leva a distinguir, com mais ou menos agrado, as atitudes umas das outras.

Quando do namoro, por exemplo, não são afinal só as meninas que são ladinas e coquetes, nem só os rapazes que são conquistadores. No namoro entre as aves — sejam de capoeira, sejam livres como as andorinhas ou as cegonhas — para escolha dos noivos tem grande influência não se sabe se decisiva, a força, a estatura, o brilho da plumagem e do canto. Entre os macacos, como entre as feras, parece que as coisas se passam semelhantemente. O cão, o gato, o cavalo que se sabem observados podem também mostrar um certo garbo que será possivelmente uma manifestação de amor próprio.

Nada disto tem que ver, aparentemente, com as necessidades da subsistência. Se assim acontece com os bichos, o que não acontecerá com os homens?

 

O estudo dos homens primitivos faz-se pelos seus vestígios na terra e também pelo estudo de alguns povos selvagens cuja evolução parece acompanhar a evolução que daqueles conhecemos. Por qualquer destes caminhos se vê como é natural, espontâneo, primário, o aparecimento de pinturas nas cavernas, de enfeites esculpidos nas armas de osso, de bronze ou de ferro e a execução de vários primores e finuras de elegância e de «toilette» como furar o nariz com pauzinhos, entalar grandes rodas de pau no buraco aberto no beiço distendido, ou retalhar o peito ou os braços com belos e atractivos «repoussés» de pele endurecida.

            Por feitiço, ou deleite puramente visual, esses ou outros desenhos aparecem sempre e não aumentam, absolutamente em nada, a eficiência das armas, a segurança dos refúgios ou a protecção do corpo.

São meras decorações sem a mais pequena utilidade da chamada «prática». Servem um fim não utilitário. São obras de Arte. Para que foram feitas? Porque assim, no entender dos seus autores, os deuses deverão ser mais propícios ou porque assim as coisas serão mais agradáveis de ver.

 

Desde então até agora, em qualquer idade histórica ou pré-histórica, em qualquer época, florescente ou não, feliz ou desgraçada, nunca o ser humano se dispensou de pôr um pouco de fantasia, de gosto, nas coisas de que se rodeia.

Essa necessidade, que se mostra tão dentro da natureza humana, foi sempre acompanhada de outra necessidade também natural na evolução do homem — que é a de viver num meio artificial.

Na verdade a nossa existência — um pouco menos a do trabalhador do campo — passa-se entre linhas, superfícies e volumes regulares, que não se encontram na natureza.

A linha natural mais próxima da linha recta será a do horizonte, que não atingimos nunca. A única superfície plana da natureza que é perfeitamente horizontal será a das águas quietas — por onde não podemos caminhar. Os mais visíveis dos círculos da natureza deverão ser os do sol e da lua — onde não chegamos. Os volumes naturais mais regulares que conhecemos devem talvez ser procurados entre os cristais e os frutos, onde não podemos penetrar.

E em todo o caso a nossa existência passa-se no reino artificial da geometria, entre rectas e rectângulos e paralelipípedos, nos fios, nas ruas, nas portas, janelas, papéis, casas, móveis — entre rodas de máquinas e de veículos e sobre pavimentos bem planos e bem horizontais.

E todas estas coisas, como os fatos que vestimos, os móveis, os carros, as casas e praticamente todos os objectos que nos cercam, depois de estabelecida a sua forma e a sua cor, são, e muitas vezes sem nenhuma vantagem de natureza prática, por nós sucessiva e periodicamente transformados e substituídos, nas suas cores, nas suas formas, enfim, no seu aspecto.

É isto o que se chama a flutuação do gosto, a variação da moda.

Não nos parece, hoje, agradável de ver ou de ouvir aquilo que há dois anos, apenas, deliciava os nossos olhos ou os nossos ouvidos.

É muito curioso notar que, para o nosso sentir, a moda dos nossos avós é, em geral, menos ridícula do que a moda dos nossos pais. Mesmo dentro do nosso tempo, também nos choca mais a moda recente que usámos e abandonámos do que uma outra moda mais afastada que também usámos e abandonámos, e o certo é que não nos sentimos bem quando ostensivamente estamos vestidos fora da moda. Temos medo do ridículo, que fatalmente nos atingiria.

Só os pobrezinhos, os mendigos podem usar fatos fora de moda sem serem ridículos. O uso, as nódoas, a quebra das pregas e dos engomados permitem que uma labita nos ombros dum pedinte não nos provoque o sorriso. Qualquer fato velho é sempre farda de mendigo, é sempre um fato de trabalho.

 

O Povo varia também as suas modas, mas duma maneira cíclica. Aceita, como certo atraso, certa moda que misteriosamente lhe agradou de entre tantas que «a gente fina» lhe mostra. E aguenta-a, contente com ela e consigo próprio.

Veja-se a saia curta e travada que as varinas adoptaram de repente e mantém há tantos anos. Veja-se a calça larga, a gravata de grande nó — coisas que a gente chic já abandonou, mas se mantém popular em certos meios populares. Sempre assim foi. Assim é que se faz a tradição, e se estabelece uma certa fonte de interesse histórico e artístico. É nessa permanência que se exprime mais evidentemente o carácter duma época — o seu estilo.

 

Nós não podemos rir-nos das modas dos selvagens. Eles estranharão as nossas como nós estranhamos as deles.

Parece que os negros acham as caras dos brancos todas parecidas, como nós achamos as caras dos pretos todas semelhantes — e podem até achar particularmente linda uma negrinha que nós achamos particularmente feia.

Se as negras furam os beiços e apertam violentamente os seios com uma cinta, se os chineses obrigam (ou obrigavam) os pés das crianças a não crescerem além dos limites dum calçado estreito, não esqueçamos os brincos nas orelhas, as dietas forçadas e doentias das nossas elegantes e o exagero de certos sapatos de saltos altíssimos que mal deixam caminhar, de certos chapéus exíguos que não abrigam do sol e de certos vestidos que não abrigam do tempo.

Mas todos estes exageros de forma e de luxo da moda actual — no fim de tudo limitados pelo carácter prático e utilitário da época em que vivemos, não chegam ao de certos espartilhos de ferro medievais, ao de certos sapatos venezianos com mais de um palmo de altura, como andas, que se ocultavam debaixo da cúpula duma saia larga e espessa (as mulheres sempre gostaram de elevar a sua estatura) ou de certos penteados altíssimos como os que Tolentino tão graciosamente caricaturou, ou ainda da saia de crinolina — etc., etc.

Nos homens também não seria possível agora o sapato do século XV, tão comprido que era necessário levantar-lhe a ponta e ligá-la por uma delgada corrente ao joelho, ou vestirem-se os oficiais do exército com casacas de sedas claras, enfeitadas com rendinhas e laços, nem era possível que eles se perfumassem, pintassem, pusessem pó de arroz e conversassem, entre si, na linguagem mimada e efeminada dos salões. E em todo o caso esses oficiais cheios de «rouge» e de roupas finas como as das senhoras, duma época em que o ideal da moda masculina era uma feição feminina, bateram com galharda valentia os exércitos espanhóis nos quais a vida e os costumes eram austeros e viris. Mais uma vez foi enganosa a moda de França.

 

Não seriam como os fatos dos oficiais as fardas dos soldados como não o poderiam ser os fatos dos trabalhadores.

Nos fatos das profissões é a natureza do trabalho que dita a, forma e não a moda.

Os aventais de sola do ferreiro ou do sapateiro, o avental de pano do carniceiro são conhecidos desde o Egipto, como a ferramenta: colher de pedreiro, o arado, a serra ou o martelo, o formão ou o remo.

Lembro-me de assistir já há bastantes anos, quando começou a aparecer a moda dos cintos de borracha, coloridos, à conversa entre um rapaz pescador e um lojista da Praia da Nazaré que pretendia convencê-lo a usar um desses cintos estreitos, de borracha, em vez da cinta larga de malha de lã, o casaco de alfaiate em vez da camisola de castorina feita pela Mãe, e sapatos «como usavam os de Lisboa, dizia ele, que é gente civilizada e não uns brutos descalços como vocês são aqui na Praia».

O rapaz, rindo-se, deu ao lojista, embora por outras palavras, esta lição de lógica e de bom senso:

— «Está bem, eles têm razão. Para saltarem do cais para a traineira a vapor, podem estar calçados; mas se tivessem de meter os pés à água para fazerem entrar no mar o barco encalhado, como nós fazemos, teriam de andar descalços. Se tivessem de puxar pelos remos, não poderiam usar casacos. Se vissem, com a rebentação, tudo molhado à volta e quisessem conservar secos os fósforos e o tabaco, teriam que usar esta bolsa que é o barrete e que é o que de mais alto temos no barco. O boné é muito pequeno para isso. Depois, com o barco descoberto e sem uma sombra, é ainda o barrete que, tombado à esquerda ou à direita, nos livra a cara do sol. Para guardar um pedaço de broa a que se deita a mão enquanto a outra segura o remo, temos a cinta. O cintozinho para isso não presta. E calças — só em dias de descanso (como os sapatos) pois num momento precisamos de nos arregaçar até acima, quando entramos na água — e para isso só as ceroulas largas, de atilhos. E tudo de lã, que é para não arrefecer...»

 

Assim como não se compreenderia um marinheiro na faina do seu navio, necessitando duma perfeita liberdade de movimentos, vestido com uma farda de gola cingida ao pescoço e capa flutuante no espaço, assim não se perceberia um cocheiro com o alcache de marujo e de peito descoberto, ou um pastor com uma camisola de fogueiro.

O capote alentejano tapa o cavaleiro e o cavalo, a calça de boca de sino evita que a terra entre para os sapatos do cavador, o padeiro veste-se de branco, o carvoeiro de escuro...

 

Mas se as profissões evoluem, — se em vez de cavadores houver só «chauffeurs» de tractores agrícolas, se em vez de cavalos usarmos no campo apenas «conduites», se em vez de barcos a remos só houver gasolinas, se a moagem, as fabricações de sapatos, de móveis, etc., tudo, enfim, se for mecanizando, como na realidade vai, então não se evitará o desaparecimento dos fatos característicos dos vários trabalhadores, que quase uniformes atravessaram o decorrer dos séculos.

E de nada valerão os bons desejos dos tradicionalistas que querem salvar esses aspectos tradicionais do traje.

Ouvi já, na rádio, a exortação de um desses, que pedia à gente do campo que «conservasse a graça ingénua dos seus trajes». Não se lembrava o orador que deixa de ser ingénuo quem percebe que o é. O ingénuo, afinal, era ele...

Desta luta contra a corrente nos vem apenas o espectáculo triste dum regionalismo fabricado, falso, de opereta ou de revista, dos ranchos folclóricos de fatos de máscara, macaqueando os sãos, autênticos, «e por isso belos» fatos que os avós usaram. Isso não é regionalismo são, logo não pode ser nacionalismo são.

É o erro, infelizmente vulgar, de tapar-se a fenda da parede em vez de se consolidar a parede. É como querer fazer civilização mostrando alguma das suas consequências exteriores. É como querermos parecer pessoas fortes, atléticas, não o sendo, e aceitarmos que o nosso bom alfaiate nos ajude com chumaços de algodão a parecê-lo; ele fabricará os músculos que nos faltam e dar-nos-á a desejada, e para nós suficiente, presença de um campeão olímpico...

Temos de reagir contra esta doença, e o caminho é só um: o de uma educação consciente e sã. Mas eu estou a querer falar de Arte. E que tem ela que ver com isso ?...

Lá mais adiante procurarei responder a esta pergunta.

 

As flutuações do gosto, a que agora vamos assistindo, resultantes da vontade de variar dia a dia, e que nos parecem grandes, não são profundas. São como a pequena agitação à superfície da água do mar, não são as grandes ondas que mexem o seu interior.

Os grande movimentos colectivos de gosto, os que caracterizam as épocas e a que se dá o nome de estilos, não são bem percebidos na época em que decorrem, nem nessa altura se pode saber que particularidades os ficam, de futuro, a definir.

Estamos dentro duma floresta e só vemos os troncos das árvores próximas. Só depois de sairmos dela poderíamos avaliar da sua grandeza, da sua forma geral e da sua cor. Não podemos pois saber, embora sintamos a gestação dum estilo, como se definirá o estilo do nosso tempo.

Como alguém disse: — quando Luís XIV se sentava num «fauteil», não sabia que ele era um «fauteil» «estilo Luís XIV»...

 

«Os gostos não se discutem. De gustibus non est disputandum» já o diz a sabedoria das nações, há muitos séculos. E o nosso Povo diz com graça: «Se não fosse o mau gosto, que seria do amarelo?»

Na verdade, todos nós somos diferentes, e nem sequer somos simétricos. Não vemos o mesmo, não escrevemos com letra igual, uns são altos outros baixos, uns melhores outros piores, uns mais isto outros mais aquilo.

E os gostos são também, naturalmente diferentes uns dos outros.

Todavia muitos gostos são comuns a todos nós.

Admitimos perfeitamente que o hotentote prefira carne crua, a sangrar, à carne cozinhada. Nós todos preferimos carne cozinhada (se não preferirmos peixe...) e as nossas divergências limitam-se a particularidades de forma e de tempero.

Afastamo-nos mais da natureza que o hotentote e porque somos mais civilizados parece justamente que os nossos gostos mais permanentes são justamente esses que mais se afastam da natureza. Em pequenos gostamos, naturalmente, de xaropes açucarados e de rebuçados. Uma bebida gasosa já nos faz certas cócegas imprevistas e desagradáveis na língua (impressão que uma pequena minha conhecida comparava à de «pés dormentes»...) Provamos pimenta — e ficamos com a boca em brasa. Depois cerveja — e detesta-se. Leva-se «cognac» aos lábios — e são as lágrimas que vêm aos olhos. O café amarga-nos. Fuma-se um cigarro e vem tosse e náusea.

Mas insistimos — e incompreensivelmente vamos tomando o gosto por essas coisas detestáveis, coisas que qualquer animal repele — e deixamos a água com açúcar que qualquer animal aceita com prazer.

Verificamos assim que os prazeres maiores são para nós aqueles cuja aceitação nos custou a obter, aqueles a que nos custa aclimatar.

Até, neste caso, a lei do esforço é lei de vida.

 

As condições da existência vão mudando com o emprego, cada vez mais largo, do motor e da electricidade, etc.

O próprio pescador de agora já quase só pesca em traineiras motorizadas e a lavoura também já se vai mecanizando. Na minha aldeia do Alentejo já ninguém amassa pão em casa — e todos vão à padaria. O telefone, a rádio, a camionagem deram à minha terrazinha uma fisionomia muito diferente da que possuía há vinte anos.

São tudo consequências — cada vez mais patentes — do espantoso progresso material dos nossos tempos.

Este progresso geral, tão clamorosamente exaltado, é aceite sofregamente por nós todos, que vemos o nosso vizinho com automóvel, frigorífico e rádio, etc., tudo coisas que se dispensaram durante séculos mas são tão agradáveis, cómodas e sedutoras, que as desejamos para nós também. E todos nos vamos metendo no desejo de satisfazer os desejos, cada vez mais naturais, da nossa vida cada vez mais artificial.

Que mal há nisso? Parece-me que nenhum, senão este muito grande. É o de termos de pagar esses prazeres e esses progressos por um preço terrivelmente caro e em moeda mais valiosa do que o oiro, embora esse preço seja pago em prestações suaves e nós não demos por elas.

O preço — é a nossa liberdade.

 

Parece exagero e não o é. É bem assim; o preço é a nossa liberdade.

Vamo-nos metendo na nova engrenagem artificial e mecânica da sociedade, que insidiosamente nos vai puxando e vamos, com alegre inconsciência, perdendo a nossa liberdade.

Não a liberdade política — mas a liberdade de nos determinarmos, de comandarmos o nosso trabalho e a nossa vida. À força de usarmos as máquinas vamo-nos traindo pouco a pouco e levando à nossa existência uma feição mecânica, fria, monótona, inumana.

A época maravilhosa em que vivemos não me parece conter-se só na designação de época da máquina. É mais e mais grave do que isso. É a época da medida, do espírito geométrico, frio, matemático, científico, que dos grandes cérebros construtores desta civilização destinge abastardado para os cérebros primários, incultos, imaturos, ou pior, estéreis de muita gente.

É a época do «técnico» — não só do técnico superior, criador de saber — como do técnico inferior, o que utiliza aquele saber numa especialidade da indústria ou do trabalho. Refiro-me ao técnico de âmbito inferior, o senhor que julga saber muito, embora de muito pouca coisa, o especialista duma actividade banal que se imagina sábio, ou é considerado como tal pelos outros, que não sabem pegar numa banal peça de ferramenta.

Pode não ter ideias sobre nenhuma outra coisa, mas tira dessa circunstância aliás tão cómoda, um grande orgulho, com a admiração dos outros, que ignoram, maciçamente também tudo, a não ser a sua especialíssima especialidade. O técnico é, como alguém disse, o homem que sabe sempre corrigir o seu erro porque os limites da sua acção são estreitos; e por isso também ele se sente grande nesses limites. Não pode reparar que é um entrevado, tolhido num quarto, a quem é vedado correr es campos e ter a felicidade de sentir-se pequeno numa imensidade de que faz parte, que o espanta e que não compreende. O técnico não faz parte do universo. Faz parte duma máquina e sente-se nela uma peça valiosa.

Mas ele é indispensável à vida das máquinas, logo ele é indispensável a todos nós, que vivemos no meio das máquinas. A sua opinião pesa e a sua maneira de pensar e de falar alastra por toda a parte. Já não se diz, por exemplo, que certa pessoa é muito honesta. Mais nitidamente se dirá que ela é 100 % honesta.

De este espírito terrível — que leva o homem a sentir-se honrado com a semelhança da máquina, até da de calcular, vem o das palavras de origem científica, mesmo que não se compreendam ou que se apliquem mal; e se as palavras são esdrúxulas, então são ainda mais finas...

Um material é mais catita se lhe chamarem sintético — mesmo que não o seja. Certa caneta transparente na qual se verifica o nível da tinta terá «televisor» ou «telémetro», como calha, embora numa caneta, na realidade, não interesse para nada um televisor ou um telémetro.

Estética é também uma palavra de largo consumo. Um objecto que achamos bonito, não se diz que é bonito, diz-se que «tem estética». Certas casas onde as senhoras bonitas se vão fazer ainda mais bonitas, dizem-se especialistas em beleza estética.

Ora Estética é, como se sabe, a filosofia, a ciência da beleza, não é a beleza; como a hidráulica trata dos líquidos e não é um líquido, como a higiene trata da saúde e não é a saúde, como a botânica trata das plantas e não é uma planta. Não seria talvez mau convidar-se o autor da beleza estética a tratar da sua saúde higiénica com um chá de planta botânica em água perfeitamente hidráulica aquecida a um calor suficientemente térmico...

Um aparelho de rádio, um pesa-papéis, um tinteiro, coisas que não são destinadas a ser arremessadas pelo ar (senão eventualmente...) são muito mais apetitosos se dissermos ter uma boa forma aerodinâmica, — apesar das suas funções eminentemente estáticas. Mas é tão bonita a palavra...

Assim também à nova burguesia do trabalhador corresponde uma terminologia nova.

O honrado ferrador camiliano envergonhar-se-ia agora de ser chamado assim — e nos seus cartões de visita mandara pôr «siderotécnico». O carroceiro é «condutor de viaturas hipomóveis». O sapateiro, «manufactor de calçado». E o embalsamador, «taxidermista»...

 

A actividade humana, entre tantos motores, tantas válvulas electrónicas, etc. — perda a sua escala própria c sujeita-se à escala métrica, fria e impessoal.

Manda mais a máquina do que o homem e este tem de adaptar-se ao critério mecânico de medida, a ponto de se calcular o seu esforço apenas em função do tempo.

O operário cada vez trabalha mais raramente «por tarefa». Cada vez mais é pago «a tanto por hora». No fim do dia está fatigado e o seu trabalho é menor. Nessa altura, se tiver de trabalhar durante mais tempo, diminuído embora na sua capacidade de trabalho, ganha a dobrar, o que não é lógico.

Não é que o homem que trabalha não mereça esse prémio. O que ponho em evidência é que a regularidade mecânica que se atribui ao trabalho do homem é falsa e ofende-o.

Muitos reagem, porque do fundo do seu ser vem a revolta contra aquela condição. E é ver como o trabalhador fatigado do trabalho que lhe é imposto vai despender energias, generosamente e gratuitamente, no desporto, no campismo, em mil trabalhos voluntários e não rendosos, onde ele satisfaz algumas das suas necessidades de autonomia e de independência.

As nossas vidas profissionais estão comandadas pelo relógio, para o qual um ano tem exactamente 365 x 24 horas, sempre exactamente iguais.

Mas para nós o tempo não corre como para um relógio; as horas não são todas iguais, não há mesmo duas iguais. Umas passam lentas — outras velozes. Mas os anos, esses passam sempre breves, cada vez mais breves...

 

Como numa viagem de comboio, em que a paisagem parece enganosamente deslocar-se e nós estarmos quietos, também nós vamos; passando pelo tempo imóvel. Cada vez vamos mais depressa, cada vez a nossa angústia de ver passar o tempo é maior. E procuramos segurá-lo, procuramos ter a consciência do seu valor, medindo a sua passagem, olhando agora a marcha dos ponteiros dum cronometro como os antigos seguiam o correr dum punhado de areia numa ampulheta, ouviam as gotas de água duma clepsidra ou os sons dum sino ou viam ainda passar a sombra num relógio de sol.

Mas se a vida é isso, se é o tempo breve que passa, é preciso aproveitá-lo como nos diz um grande Poeta:

 

                        Procuremos somente a beleza, 

                        que a vida é um punhado infantil de areia ressequida,

                        um som de água ou de bronze,

                        ou uma sombra que passa...

 

Sigamos o conselho de Eugénio de Castro e procuremos a Beleza.

 

Mas onde está a Beleza ?

A Beleza pode estar em toda a parte. Numa flor, num fruto, nas manchas de humidade duma parede, num acastelado de nuvens ou no mover das ondas do mar, no cantar dos pássaros, num quadro ou numa escultura ou numa fórmula de matemática, num dia quente de verão como num dia tempestuoso de inverno, numa catedral, numa locomotiva, num avião, nas formas dum animal e talvez acima de tudo num sorriso de criança ou numa obra de caridade.

Em toda a parte pode haver Beleza e em toda a parte a podemos encontrar. Mas a Beleza que devemos procurar não é apenas a que corresponde ao deleite superficial dos sentidos, como uma gravata bonita, um prato bem cozinhado ou a toada duma cantiga em voga.

A Beleza que mais devemos procurar é a que nos traz a Alegria, a grande Alegria da vida. Não a alegria comercial, fácil e ruidosa das revistas de teatro ou aquela que os programas de rádio nos fornecem ao domicílio carregadinhos de optimismo, boa disposição, etc. em doses diárias. A Alegria que devemos procurar tem de nascer dentro de nós e é coisa tão séria, como já alguém disse, que não se manifesta em risos. É aquele dilatar de peito que todos sentimos quando sentimos ter cumprido o nosso dever, quando nos comovemos diante duma grande obra de Arte ou dum grande espectáculo da natureza, que pode estar na imensidade duma pequena flor silvestre.

É a faculdade de nos maravilharmos perante os maravilhosos aspectos da Vida e do Mundo, é o dom inefável de admirar, num estado de alma puro e receptivo.

Esse dom é um grande, bom e fiel companheiro que devemos estimar e acarinhar quando o encontrarmos e que nunca mais nos abandonará.

É esta a Alegria que devemos procurar. É o pão que mata a nossa fome de Pureza e de Beleza. A cantiguinha doce não serve. A fome não se mata com rebuçados.

 

Mas para estarmos à altura dessa Beleza, para possuirmos esse dom, para atingir essa capacidade, precisamos de um esforço, precisamos de tentar compreender o que de entrada certamente nos foge, precisamos de teimar, no convívio, no estudo, na meditação.

Escolheremos um guia, que nos ajudará a escalar o monte, um pouco áspero. Custa-nos a fazer esse esforço, pois é esforço. Mas não esqueçamos que, se tivermos preguiça ou cobardia para o fazer, temos de renunciar aos largos e belos panoramas que só lá de cima se desfrutam e que generosamente compensam o nosso sacrifício.

Precisamos de bons guias. Quem são? Uns são os Heróis, outros os Sábios, outros os Santos. Há ainda outros, que se chamam Artistas. Para o nosso assunto são esses os que mais interessam.

 

Que é, então, um Artista ?

Um Artista diz-se ser aquele que faz uma obra de Arte. Se o Artista é o que faz a obra de Arte, então é um criador, porque não pode haver obra de Arte sem haver Criação.

Mas teremos, e imediatamente, para evitar confusões, de distinguir entre os grandes criadores, os grandes revolucionários — que são muito raros — e a legião dos que os seguem por caminhos próximos. Os primeiros rasgam as estradas novas — os outros, ou seguem essas estradas ou seguem veredas que abrem ao lado, mas cuja direcção não conseguiriam adivinhar se não estivesse já aberta a estrada...

Também esses fazem as suas obras e põem alguma coisa de novo no que fazem. Na caminhada em que acompanham os outros não põem os pés exactamente nas pegadas deles. Não são iguais entre si, nunca — mas facilmente se confundem aos olhos de quem, vendo passar a coluna, não atentar bem em cada um dos soldados — soldados que não marcham debaixo de forma...

Também na Ciência, na Filosofia, na Guerra, não há muitos como Newton e Descartes, S. Tomás e Aristóteles, César e Napoleão — e continua a haver milhares de cientistas, de filósofos, de tácticos, a pensar e a resolver problemas com aspectos novos sobre dados e ensinamentos que aqueles grandes, e outros grandes como eles, nos deixaram.

Alguns se julgam iguais a eles, é verdade. Há muitos mosquitos que se julgam iguais às águias — «pois também voam e também se alimentam de sangue» — mas o tempo encarrega-se, inexorável, de dizer quem é mosquito e quem é águia.

 

Esses grandes criadores do património espiritual da humanidade, porque são grandes criadores — são desobedientes, insubmissos perante as normas estabelecidas, para obedecerem a uma misteriosa força interior, a que costumamos chamar «inspiração».

S. Francisco, S. Domingos, S. Bento, não se submeteram aos costumes do mundo do seu tempo; Napoleão desobedeceu às regras militares estabelecidas; também Nun' Álvares desobedeceu nos Atoleiros, em Aljubarrota e principalmente em Valverde. Nelson fugiu às regras assentes, em Aboukir e principalmente em Trafalgar, onde a sua desobediência foi mais evidente porque não era o comandante em chefe.

A batalha desenvolvia-se e os navios do Almirante sob cujas ordens servia, seguiam numa certa formação — como seria indicado — quando a «Victory», o navio do comando de Nelson, saiu da linha, bruscamente, para uma acção individual. Foram dizer a Nelson que no navio almirante içavam os sinais que mandavam a «Victory» retomar o seu lugar na formação. Mas ele estava decidido — e encostando o óculo ao olho esquerdo, cego desde a batalha do Egipto, assestou-o na direcção dos sinais e respondeu com humor: «Não vejo nenhum sinal»...

Este homem, de pequena estatura (como Napoleão e Nun' Álvares não atingiria a altura mínima agora exigida para o exército) — zarolho, maneta, epiléptico e que enjoava no mar — foi o maior chefe naval da maior potência naval do mundo. E aquela sua decisão, que o teria levado a gravíssimo castigo se tivesse falhado, foi uma decisão genial. Revolucionou completamente a táctica da guerra no mar.

Do mesmo modo, repito, acontece com os grandes criadores no campo da Arte. As criações artísticas penetram-nos através dos nossos sentidos —  mas nem sempre estamos preparados para aceitar o que eles nos trazem.

 

No Século XVII, quando a Holanda, em plena pujança, tinha um dos seus mais fortes esteios nas suas Corporações e Companhias, abundavam os quadros de grande formato retractando os grupos de arcabuzeiros, de arqueiros, etc. A Rembrandt foi encomendado um desses quadros em dimensões enormes, onde se fixariam para a posteridade os componentes de certa companhia.

Contra todos os usos, o Pintor, retractando embora todas as pessoas que devia retractar, ordenou-os na tela, não segundo a sua importância hierárquica ou de modo a iluminar todos por igual, mas dando mais importância ao efeito geral do quadro do que ao pormenor da evidência dos rostos, mais ao claro-escuro do que à democrática igualdade de aspecto dos retractados, alguns dos quais ficaram muito na sombra.

Provocou uma grande indignação entre os interessados no quadro, que reclamaram, disputaram, não quiseram pagar, etc.

Teriam ficado contentes, se Rembrandt tivesse obedecido à corrente — mas nós não tínhamos agora a estupenda obra que abriu caminhos novos à visão e à compreensão dos vindouros.

A Miguel Angelo foi recomendado o túmulo dos Médicis. Para eles o grande escultor concebeu estátuas que não retractavam os príncipes com fidelidade, antes interpretavam, como símbolos, a amargura universal que pairava na atmosfera espiritual da época. Não são os príncipes que ali estão. São a própria humanidade, que nada espera já deste mundo e anseia pela tranquilidade da morte.

Alexandre de Médicis que encomendara a obra não gostou. Mas daquelas esculturas saíram ideias que encherem os séculos.

A estátua de David foi encomendada ao mesmo escultor para se representar, num corpo juvenil de atleta, a viril mocidade da república florentina. Também não agradou — mas desta vez como a crítica fosse mais localizada (achava-se o nariz um pouco grosso) ele disse concordar e subiu ao escadote com o martelo e o cinzel na mão, como que para desbastar um pouco a pedra e corrigir o defeito apontado. Lá em cima deu umas pancadinhas no ferro mas sem tocar no mármore, e deixou cair um pouco de pó de pedra que levava escondido na mão. A ilusão foi perfeita e o crítico envaidecido, achou bem a correcção, que agradeceu a «Micer» Miguel Angelo...

 

A obra de Arte é produto duma sensibilidade. É, como se diz muito agora, uma «mensagem». Se ela é alterada por outrem, perde a sua autenticidade e, embora possa, a partir desse momento, ganhar maiores sufrágios — perdeu alguma coisa, ou tudo, como «mensagem».

«Um quadro está pronto quando o Pintor com ele disse o que queria». Não se pode dar melhor ideia da dignidade da obra de Arte.

Mas que nos traz de novo uma pintura que não possa trazer-nos a fotografia a cores?

Imaginemos, por exemplo, o caso duma certa paisagem que por qualquer circunstância impressionou um Artista, que sente o desejo de reproduzi-la.

Pode essa paisagem tê-lo impressionado a ele apenas, e não interessar a outras pessoas nem mesmo a outros Artistas.

Ele viu ali uma Beleza que outros não viram e vai portanto, procurar reproduzir na sua tela, nunca exactamente a realidade objectiva «do que lá está» e todos vêem e a ninguém mais interessa — mas a Beleza de algum contraste de linhas ou de formas, de alguma harmonia de cores ou de tons — que ele viu e deseja transmitir aos outros que não deram por ela. Oferece assim aos outros um pouco de si mesmo. Seleccionou, destrinçou, escolheu, e mostra-nos uma jóia separada dos calhaus com que se confundia, no monte (onde aliás terão ficado outras jóias que ele não viu ou que desprezou). Depois de a vermos, de a compreendermos como jóia, também nós poderemos dar por essas jóias, mesmo quando estão misturadas confusamente com pedras sem valor.

Assim a obra de Arte verdadeira enriquece o nosso entendimento, educa-nos e eleva-nos.

O ensinamento que essa pintura nos traz, de discernimento, de Beleza e de possibilidades de análogas descobertas, é infinitamente mais importante do que o seu valor como «retracto de um certo sítio» mais ou menos reconhecível por qualquer pessoa a quem esse sítio não é estranho.

Não se espere, em todo o caso (senão excepcionalmente) que esses ensinamentos sejam súbitos e intensos. O tratamento é lento, como uma cura homeopática.

 

Se o Artista verdadeiro acha que conseguiu reproduzir aquilo que queria reproduzir, coisa vista ou coisa imaginada, então fez uma obra de Arte — ainda que nem todas as pessoas apreendam o que ele nos quis dizer.

Assim é que, perante a obra de Arte Verdadeira — e só dessa falo — podemos ter um imediato sentimento de admiração ou pode o nosso espírito recusar-se a aceitá-la.

A linguagem artística dos grandes criadores nem sempre é hermética e de compreensão difícil. Leonardo, Rafael, Ticiano, Goethe, Victor Hugo, Dante, etc. conheceram em vida o esplendor duma glória que não diminuiu com o tempo — porque o ambiente em que viviam era propício à compreensão da sua obra e porque a linguagem que nela usaram era clara.

Não se julgue porém que, se as formas de expressão dum Artista são para nós correntias e simples — essas formas surgiram espontâneas. Um Vieira, um Eça de Queiroz, um João de Deus, por exemplo, só aparentemente escreveram com fluidez e simplicidade. Essas qualidades, como a simplicidade das pinceladas dum Velasquez ou a leveza das aguadas dum Turner são produto de muito trabalho, da repetição de muitas tentativas que não resultaram bem aos olhos do autor.

Uma obra de Arte ou se faz dum jacto (se isso for possível) ou leva muito tempo, disse-o Miguel Angelo ao nosso Francisco de Holanda.

No retracto de Augusto Rosa, pintado por Columbano, o escarpim de verniz, que está feito com uma simplicidade que assombra, foi pintado, raspado e repintado meia dúzia de vezes, ou mais, segundo o testemunho dum discípulo do mestre.

Aqueles versos de João de Deus que Augusto Gil considerava uma das mais altas expressões líricas que conhecia, e começam assim:

 

«Não sei o que há de vago, 

de indefinível, 

puro no voo em que divago...»

 

foram corrigidos, emendados, vezes sem conto, até atingirem aquela pureza e aquela perfeição.

Assim, mesmo que não o seja, e em todos os casos, uma obra de Arte deve sempre parecer uma grande improvisação. Não deve conhecer-se nela o esforço com que foi feita.

Mas, se há casos de compreensão imediata, a incompreensão da verdadeira obra de Arte de um grande artista criador é caso mais corrente, e por uma de duas causas: ou por ser a sua linguagem tão rara e tão hermética que só muito poucos a poderão seguir já — ou porque as outras pessoas não sabem nem nunca saberão entender uma linguagem mesmo fácil.

O primeiro caso é vulgar e não é o mais grave: a linguagem que nos falam os grandes criadores é nova; difícil para os que estão preparados e ainda ininteligível para os que não estão mas podem preparar-se. No segundo caso — não há remédio...

Podem recitar-me um maravilhoso poema hindu. Mas eu achá-lo-ei detestável, monótono ou ridículo porque não entendo a língua hindu. Serei levado a suspeitar que o recitador se está a divertir à minha custa e não passa dum intrujão — mas terei talvez perdido um grande prazer por não entender o hindu.

 

O Artista — seja qual for o seu meio de expressão, precisa, para fazer a sua obra, de dominá-lo perfeitamente, de modo a poder empregá-lo sem nele pensar — como nós, quando caminhamos, não vamos pensando na maneira de mexer as pernas.

Esse domínio, que é a base da profissão, consegue-se à custa de esforço e canseiras, num aprendizado que nunca é excessivo.

Mas muito mais penosa do que esse aprendizado é a procura da realização, da forma de corporizar a ideia — e é isso que faz dolorosa, enervante, a gestação da obra de Arte. Nisso está também o seu maior estímulo. O Artista que vai realizar uma obra não inspirada nalgum aspecto objectivo da Natureza que o tivesse impressionado, parte duma ideia interior, a qual quase sempre lhe aparece sem explicação aparente. É fruto da tal inspiração que todavia tem para se manifestar, de ser solicitada. O Artista procura a ideia e ela nega-se a aparecer-lhe; é preciso insistir, até que ela lhe aparece inexplicavelmente, de súbito. Se a ideia lhe agrada o Artista estuda-a, vive-a, respira-a, não a larga em todo o momento. Mas um grande perigo o espreita: vem ele a ser que, na realização material daquela ideia, esta vai perdendo a frescura inicial. E ele verifica que não consegue atingir na concretização do que sonhou, a elevação com o que o sonhou.

 

A Arte realiza-se em sínteses e não em transposições naturais; há sempre uma «escolha», uma sublimação, uma simplificação. Suprime-se o que se puder suprimir de acessório, procura-se, o essencial. Esse trabalho, por vezes penoso, nem sempre é fácil e nem sempre é possível.

No final duma carta a D. João IV o Padre António Vieira pedia-lhe que lhe perdoasse o ela ser longa «porque não tivera tempo para ser mais breve». Ninguém saberia dizer melhor.

 

Além da simplificação da forma de expressão também há que limitar o seu campo.

Em qualquer manifestação artística o desaparecimento de alguns elementos trazem, por contraste, o realce dos restantes. Nalguns templos orientais a altura e a largura são relativamente pequenas em relação ao comprimento. Assim nos vem deles uma ideia de grandeza porque nos parece enorme aquele comprimento, maior do que realmente é. Nos templos egípcios era a largura que dominava, e nas catedrais góticas era a altura.

Quando entramos na Igreja da Batalha somos fortemente surpreendidos pela altura da nave, que até nos dá a ideia de ser maior do que a altura, que víramos, da fachada.

 

Assim também na pintura; ou a cor tem mais importância do que a forma, ou a forma é mais importante do que a cor (que é o caso mais frequente e mais rácico nos povos do Sul da Europa). Todas as tentativas que se têm feito em equilibrar aqueles dois elementos têm dado resultados inferiores aos conseguidos com o domínio forte dum deles.

 

As dificuldades para o Artista são, assim, desmesuradas para as suas forças em relação ao que ele imaginou poder fazer. Verifica sempre a sua incapacidade em realizar o seu sonho. Cada palmo de avanço é pago por um esforço enorme. Não atinge nunca o que pensava atingir. De aí provém aquilo a que vulgarmente se chama «a insatisfação do Artista».

Ele não será modesto — mas é sincero quando fica com a ideia de que, noutra tentativa será capaz, pois já aprendeu mais alguma coisa no que acabou de fazer. Ideia talvez errada. Mas se o Artista é realmente Artista, voltará sempre, na primeira ocasião e com o entusiasmo do começo, a levar pela encosta acima o pesado rochedo de Sísifo.

 

Nenhum de nós se lembra do que se passou na alma da criança que fomos, como não sabemos o que se passa nas almas dos nossos irmãos. Temos de ajuizar estas pela nossa, o que já seria uma base aceitável se nós nos conhecêssemos a nós mesmos. Mas o velho preceito de Sócrates continua sem realização possível. Ninguém se conhece a si próprio; como se poderá arvorar em juiz do próximo?

Se quisermos ser sinceros temos de verificar a nossa ignorância, ignorância sem remédio, e que só nos pode levar, honestamente, à humildade — que outra coisa não é senão a confissão da nossa incapacidade em resolver-mos sozinhos os problemas da nossa ignorância.

Mas seremos nós capazes de ser humildes, capazes de desprezar a glória vã de qualquer amor-próprio? Não somos. Somos apenas capazes de nos vangloriar de ser humildes, lá porque uma ou outra vez tivemos paciência para um pobre mendigo — como tantas vezes, teimosamente, nos declaramos não teimosos, como outras vezes fugimos ao perigo a gritar que é preciso ter coragem.

Mas eu vejo que, se não é fácil ser-se humilde perante um homem, é fácil ser-se humilde perante uma criança. Eu nada conheço, à superfície da Terra, mais digno de respeito do que uma criança; por isso me sinto humilde diante dela.

De um homem tememos a opinião, e por isso fugimos, disfarçamos o nosso pensamento — e desculpamo-nos a nós próprios com razões de bem-viver, de «educação» (ah! a ironia dos nomes mal aplicados...) — como se para fazermos um esforço de compreensão da personalidade alheia, admitindo como possível um erro nosso, fosse necessário afastarmo-nos das regras da civilidade.

Diante duma criança, não. Uma criança não tem passado, só tem futuro. Não tem culpas não tem maldades nem manhas definitivas. Olhando os abismos de pureza que são os olhos duma criança ninguém deixará de pensar no que ela poderá vir a ser. Que vai sair de ali? Um sábio, um santo, um rei ou um pobrezinho de Cristo?...

Se o seu destino for alto, como teremos a certeza de não perturbar o seu destino, como saberemos conduzir-nos perante a sua curiosidade, perante a sua descoberta do Mundo?

 

Foram precisos muitos séculos para que chegássemos a este estádio da compreensão da infância. Só há poucos anos uma criança deixou de ser considerada «um homem pequenino», para se considerar um «ser diferente do homem adulto», cujas reacções psicológicas são diferentes das que este tem. Se o Homem é, para o homem, «esse desconhecido» — a Criança muito mais misteriosa é para o nosso entendimento.

Pelas suas manifestações espontâneas o pensar dum bebé lisboeta parece-nos muito mais próximo do de um bebé zulo ou japonês do que do pensar do seu irmão mais velho. Não falo só do recém-nascido. Uma criança de 3, 4 ou 5 anos, por exemplo, parece-se mais (do que pode depreender-se das suas acções) com outro da sua idade, de país diverso, do que se parece com qualquer pessoa da sua família de idade muito diferente da sua.

Um ulmeiro pequenino, delgada vergôntea lisa, com algumas folhas tenras, parece-se mais com um pequeno choupo ou outra árvore do mesmo tempo, do que se parece com um grande ulmeiro adulto, frondoso, de tronco rijo e áspero.

Um Instituto oficial Suíço, dedicado ao estudo da pedagogia infantil, o «Pestallozzanum» conseguiu reunir, provindo de todo o mundo, mais de 20.000 desenhos de crianças de várias idades. E viu-se que os desenhos de crianças da mesma idade, de qualquer parte do mundo — eram semelhantes nos seus temas, nos seus defeitos e nas suas qualidades; e que eram de espírito muito diferente os desenhos de pequenos da mesma terra mas de idades afastadas.

 

Estas e outras observações só têm confirmado ser bom o caminho que segue a nova pedagogia, o qual se baseia, essencialmente, em vigiar o desenvolvimento mental e anímico da criança, amparando-o, defendendo-o mas não o forçando em caso algum. Não conheço imagem melhor dessa atitude do que esta, ainda do mundo vegetal: o educador é como o jardineiro e o menino como a roseira. Aquele não faz crescer a planta; não é ele quem determina a forma, o número, a disposição das pétalas e das folhas. Ele limita-se a preparar-lhe o terreno, a regá-la, a defendê-la do mau tempo, a ampará-la como um tutor...

 

Que papel tem a Arte nessa educação ?

Um papel de primeira grandeza, pois o sentimento aparece antes da inteligência. Muito antes de um menino poder compreender o que é uma adição ou de poder alinhar umas letras já pode apreender o interesse duns sons, dumas cores ou dumas formas. A sua curiosidade e o seu desejo, os seus impulsos de acção satisfazem-se com o canto e com uma caixa de tintas. Na sua sensibilidade fluida, em formação, espalha-se bem aquele mel, que chega largamente para a alimentar. Depois virão alimentos mais sólidos, por enquanto absolutamente indigestos.

Numa escola suíça um professor começou a sua lição de desenho a uma menina de 8 anos, por estas palavras: Aqui tens esta pequenina erva. Já reparaste bem como é bonita? Não vês como são lindas estas nervuras, como a sua cor é fresca ao pé das outras? O Bom-Deus não fez esta planta só para as vaquinhas a comerem, foi também para que nós víssemos como é linda... Não te apetece copiá-la para o teu papel?

A pequena fez a cópia, com a mão hesitante, mas com os olhos ávidos de interesse. O mestre não a emendou: achou o desenho muito bonito. Acha sempre o desenho muito bonito. A pequena ficou contente. Eu vi-o bem.

À medida que a menina cresce o professor vai-lhe dando a fazer, sempre com a sua aceitação, desenhos mais difíceis e, pouco a pouco, amparando aqui, sugerindo ali, vai sugerindo correcções nos trabalhos, que bem claramente, aos olhos da menina, são bem dela, feitos por ela, com a sua vontade e com o seu esforço. O professor foi um bom amigo, que nunca a desanimou e sempre a aconselhou, com afecto. Nunca impôs a sua vontade — pelo menos de forma que ela o sentisse. Ela foi sempre livre, e viu afinal o que é capaz de fazer. Criou uma consciência, adquiriu confiança em si própria, na sua personalidade, na sua capacidade.

 

Ao espírito cartesiano do professor médio francês, repugna um pouco este caminho. Quem diz francês dirá espanhol, italiano — e português...

Para estes espíritos aparentemente mais positivos «uma criança é um reservatório, não é uma fonte: só deita cá para fora o que se lhe meteu dentro». Para eles aquelas ideias são «pura divagação», o que interessa afinal, «praticamente» — é que uma pessoa com um papel e um lápis na mão, possa copiar a forma dum objecto qualquer ou, principalmente, possa explicar uma ideia por meio dum esboço. Ou o desenho «retracto» ou o desenho «linguagem» qualquer deles sempre objectivo. O resto não interessa...

A estes só tenho a responder que eu não vi, em nenhuma escola francesa (e vi muitas) nenhum aluno na idade própria — de 15 anos em diante, mais ou menos — copiar melhor um objecto ou exprimir, pelo desenho, melhor uma ideia, do que os alunos da mesma idade educados nas escolas e liceus alemães e suíços que me foi dado visitar em pleno trabalho, nas tais «doces divagações»... Foram eles, afinal, quem atingiu melhor aqueles resultados práticos.

Antes daquelas idades é contra-indicado pedir ao aluno a cópia de coisas concretas para o que o seu ser não está ainda conformado. Também não se pede a um menino de dois anos que corra os «100 metros-barreiras».

 

Prova-se assim, positivamente, que o interesse pela Beleza das coisas conduzido com sensibilidade pelo Professor leva mais seguramente o aluno à compreensão física ou geométrica dessas mesmas coisas, logo que esteja biologicamente apto para o fazer, do que o trabalho-forçado a que ele é sujeito, antes de tempo, com aquele único objectivo.

Ora bem.

O que eu quis mostrar até aqui foi a grande importância que a Arte tem na vida de todos nós, como companhia íntima, constante e pronta nas evasões das materialidades da existência, sem a qual esta seria insuportável, e como auxílio insubstituível na formação da sensibilidade, da consciência e do carácter.

Mas eu sou apenas um pobre artista, e como tal, poderei, e com toda a verosimilhança, ser acusado de paixão e de exagero em tudo o que digo a propósito da importância da Arte na vida de todos nós.

Se eu fosse um médico, esperar-se-ia naturalmente que eu dissesse ser a saúde pública a coisa mais importante; se fosse um jurisconsulto, que eu dissesse dever antepor-se a tudo a equidade e a justiça; se fosse engenheiro, economista, militar, que defendesse o interesse, ou até a primazia das respectivas missões.

Eu estou convencido, profundamente, da importância da Arte na nossa existência. Mas eu sou um Artista, «pessoa não prática» e pode pensar-se que exagero muito.

Vou então buscar a ajuda de pessoas práticas que pensam como eu. E que pessoas práticas...

 

Um homem aprendeu a atirar bem com uma carabina; seguiu uma educação especial e ficou especialmente apto a atirar com uma carabina. Foi admirável a sua educação de atirador. Ele pode vir a ser um «gangster» ou a ser um herói num combate em defesa da sua pátria. Em qualquer dos casos, porém, podemos admirar a forma como ele se fez atirador.

Podemos discordar profundamente da mística comunista ou da mística nazista. Mas devemos reconhecer que os seus seguidores são ou foram exemplarmente educados, de modo a viverem profundamente essa mística.

Pois um dos maiores adjuvantes da sua educação é a Arte. Nas escolas e liceus alemães, era pelo caminho que atrás citei que se desenvolvia nos pequenos o culto pelo que era belo, se aprendia a ver a beleza nas coisas naturais e nas obras de Arte — e a seguir se lhe mostrava como a grande Alemanha era bela e como os seus Artistas nos tinham trazido a companhia de grandes e altos momentos de Beleza.

Não era através de sonolentas conferências ou desanimados salões de exposição. Era «vivendo» intensamente, numa comunhão de interesses estéticos, através da música, dos corais, do teatro, da pintura, dos monumentos, que eles iam tomando uma funda consciência da grandeza do seu País. Por exemplo, num liceu, depois duma iniciação pelo mais fácil e acessível da obra de Beethoven, gradualmente, acompanhada de récitas, de histórias, de fotografias, etc. da sua época, criando nos alunos um «clima» receptivo, chegava-se à execução dos quartetos e das sinfonias. Além da riqueza espiritual oferecida assim aos pequenos, amarrava-se profundamente o seu sentir à devoção pela sua pátria, que produziu aquele génio.

«Um povo vive enquanto viver a sua Arte» — era um dos lemas de Hitler; e nos regulamentos de ensino, dava-se à educação artística, nos seus múltiplos aspectos de apetrechamento prático, de discernimento estético, de criação de personalidade, de revigoramento de amor pátrio, «o primeiro lugar», na companhia, para esta última função, do ensino da história.

 

Na Rússia dos Sovietes, partindo com maior atraso, seguiu-se caminho idêntico. Lenine deixou dito: «A arte pertence ao povo. Deve ser compreendida e amada pelo povo. Deve unir os sentimentos e a vontade das massas e elevar os espíritos». Depois o organizador da orgânica pedagógica da Revolução Pinkevitch, prescreveu o seguinte que se pôs em prática e Estaline perfilhou:

«É mais importante captar as almas do que as inteligências, pois estas são comandadas por aquelas. A ciência pode orientar as inteligências, mas os espíritos só são tocados pela Arte».

Todos eles sabem que os mercenários suíços ao serviço de Napoleão se comoviam quando ouviam as canções da sua terra — e desertavam, fugindo para ela.

Todos sabem o poder coercivo dos hinos e como a música marcial arrasta os exércitos.

 

Isto passa-se nos regimes de autoridade, que pretendem uma coesão política e para isso pedem a ajuda da cultura estética. Mas nos chamados regimes de liberdade como se encara esse problema ?

 

Vejamos o que nos dizem as prescrições do Board of Education, através da sua comissão consultiva, composta de vinte membros — professores, filósofos, juristas, etc., que se encarrega de organizar e estudar as disciplinas e as normas gerais que devem seguir-se no ensino na Grã Bretanha.

«Colocamos em primeiro lugar a música e as Artes (Artes plásticas) pelo valor que têm no despertar e desenvolver da sensibilidade estética, que é um dos mais valiosos dons humanos e ao qual ninguém é completamente alheio.

Consideramos que a capacidade de apreciação artística é tão importante como o estudo das línguas, das ciências ou da matemática».

 

Nos Estados Unidos não há uma lei central de educação como havia na Alemanha nem o Board of Education como o inglês. Mas vendo-se os propósitos das Universidades e Colégios de Columbia, Michigan, Detroit, poderemos avaliar da concordância com aquelas ideias, tão recentes aliás, na vida das nações que mesmo nas mais adiantadas ainda não estão completamente generalizadas.

Procuro, sinceramente, ser justo e imparcial quando reconheço não sermos nós, portugueses, de modo algum menos aptos e menos sensíveis do que os outros povos. Creio não mover-me o amor da minha terra em suspeitar até que somos dos mais aptos e mais sensíveis.

E por isso me entristece ver como estamos tão alheados daquelas ideias, e quanto temos de trabalhar para não aumentar, nesse caminho, a distância a que estamos dos outros.

 

Fui já muito longo, bem mais do que queria.

Vou terminar já, com a leitura das belas palavras dum autor estrangeiro, muito conhecido, e que tocam justamente nos pontos que estamos focando. Ouçamos esta veemente alocução e meditemos nela :

 

«Ser Jovem!

«A mocidade não é um período da vida, é um estado de espírito, um efeito da vontade, uma qualidade da imaginação, uma intensidade emotiva, uma vitória da coragem sobre a timidez, do gosto da aventura sobre o amor do conforto.

«Não nos tornamos velhos por ter vivido um certo número de anos; tornamo-nos velhos porque deserdamos do nosso ideal.

«Os anos enrugam-nos a pele, a renúncia ao nosso ideal enruga-nos a alma.

«As preocupações, as dúvidas, os temores e os desesperos são os inimigos que lentamente nos fazem vergar para a terra e tornar pó antes da morte.

«Jovem é aquele que se espanta e se maravilha. É aquele que pergunta, como a criança insaciável: e depois? É o que desafia os acontecimentos e encontra alegria no decorrer vida.

«Tu és tão jovem com a tua fé. Tão velho como a tua dúvida. Tão moço como a tua confiança em ti mesmo. Tão moço como a tua esperança. Tão velho como o teu desânimo.

«Serás jovem enquanto fores receptivo. Receptivo ao que é belo, bom e grande. Receptivo as mensagens da natureza, do homem e do infinito.

«Se um dia o teu coração viesse a ser mordido pelo pessimismo e roído pelo cinismo — que Deus possa ter piedade da tua alma de velho»...

 

Estas palavras também não são dum poeta divagador. Foram escritas em 1945 por um «homem de acção». 0 seu autor é um general que muitos desejaram para Presidente dos Estados Unidos da América. Chama-se Mac Arthur.